Acidente
na esquina
Não é possível lembrar
ao certo o dia da semana que me refiro, devia ser segunda ou quarta, pois o dia
era um dia de início, e a semana há sempre de se dividir em três grupos:
segunda e terça; quarta e quinta; sexta, sábado e domingo. Segunda e terça
servem para sanear os outros cinco, os intermediários seguem a sorte dos dois
primeiros, e os outros três restam para o que deixou de ser feito nos quatro
anteriores – quiçá descansar. A lógica, independentemente do trabalho que se
faça, é essa – não à toa, cantam os mexicanos, às sextas, que hoy es viernes
y el cuerpo lo sabe. Os dias, como os humanos, têm funções. Só não sei se
fomos nós que a eles atribuímos um papel ou nós que nos damos nossos papéis
porque existem os dias.
Na verdade, era definitivamente
uma segunda, pois, no ônibus a caminho do trabalho, tinha pensamentos próprios
de segunda – a ordem do que fazer, e não o que fazer. Era mesmo segunda,
e o sol imponente de fevereiro borrava o céu azul, violando-o, mas o calor, surpreendentemente,
era suportável, especialmente nas sombras, e foi isso que pensei quando saltei
na rua Jardim Botânico, sentido centro, e olhei para o outro lado, para o verdadeiro
Jardim Botânico, e encarrei aqueles imensos guarda-sóis verdes que protegem a
rua: na sombra está agradável. Três vezes na semana o mesmo trajeto Barra-Zona
Sul, sempre chegando no escritório depois de 11h10 e antes de 11h30, com
infinitas variações entre esses horários, mas nunca antes ou depois dos
limites. Isso, creio, é o que poderia se chamar de rotina.
O caminho entre saltar
do ônibus e o prédio de espelhos que guarda o escritório onde trabalho exige
uma caminhada breve, de três minutos. Naquele meio tempo, ocupo-me observando
os meninos que vendem bala na rua, com aquela mania de colocar os pacotes no
retrovisor do carro. Me irrito sempre que vejo aquilo retardar o trânsito para
logo me culpar por dirigir qualquer sentimento negativo àqueles meninos que
nunca tiveram a chance de vestir a camisa social que eu uso. Ao longo do
caminho, cruzo também com outras vidas, vidas invejáveis, vidas que julgo
melhores que a minha. Vejo casais andando de bicicleta despreocupados e em
harmonia; vejo turistas rumo ao Jardim Botânico segurando nikons pelo
pescoço; e vejo, porque são facilmente vistas, belas moças fazendo qualquer
coisa, já que quando com elas me deparo todo o mais evapora – enxergo-as,
apenas. Sempre esse caminho, sempre esses arquétipos, sempre ileso até o
escritório. Até aquela segunda.
A caminhada breve após
saltar do ônibus ocupa parte da Jardim Botânico e um breve trecho do cruzamento
que vai da Pacheco Leão até a General Garzon. Atravessar esse trecho exige,
para que não seja preciso correr até o outro lado, que o pedestre roube um
pouco o espaço da rua e espere sua vez na ciclovia. As bicicletas, espertas, já
sabem exatamente quando desviar. É um acordo tácito que funciona para os dois
lados: assim que fecha o sinal do cruzamento, basta caminhar normalmente que se
chega ao destino. As bicicletas, mais lentas que os carros, necessariamente
passam em seguida. 
Nesse dia, extraordinariamente,
um carro furou o sinal da Pacheco Leão, e eu, após dar o primeiro passo para
frente com a perna direita, retrocedi ao ver aquele voraz Peugeout 206. Quando
dei o passo para trás, uma ciclista que não esperava pela brusca mudança de
planos me acertou. Cambaleei horizontalmente, como se a Torre de Pisa, torta,
finalmente caísse, até encontrar o chão. Olhei para cima, e a ciclista, boquiaberta
e nervosa, estendia a mão para mim.
Quando avaliei seu
rosto, imediatamente fiquei feliz pelo acidente. Ela era absolutamente linda, mesmo
com aqueles capacetes oblíquos de bicicleta, e eu não consegui, de imediato, reagir
ao braço esticado que deixou no ar. Foram dois arrebates seguidos: a bicicleta e
ela. Antes de continuar o périplo pelo resto de seu corpo, encostei minha mão
em seu antebraço e, enquanto me levantava, examinei-a por completo: abaixo do
capacete, olhos também oblíquos, puxados mesmo, que provocavam uma angulação harmônica
a todo o rosto; o nariz, fino mas não arrebitado, combinava com a boca, abaixo,
igualmente fina, mas não fina demais. As maçãs do rosto sobressaltavam e estavam
vermelhas, pelo que concluí que o trajeto já estava terminando. Seu braço
estava molhado de um suor sutil, um suor que só ultrapassou seus poros por necessidade
biológica – não fora feito para sair de dentro de si; na verdade, não deveria
nem existir. Coberto por uma camisa branca, dessas de tecido de corrida, e por
uma calça legging preta, estavam as curvas leves de seu corpo, curvas
verdadeiramente ideais. Ao final de tudo, finalmente de pé, tive certeza: estava
feliz.
Ambos de frente, de pé.
Ela, após se desculpar muitas vezes em poucos segundos, perguntou se eu levava
algo importante na mochila, algo que poderia ter quebrado, e só então raciocinei
que meu computador, talvez, tivesse sofrido perda total. Não poderia iniciar
aquela interação com uma má notícia, e então respondi que não, só levava alguns
livros para pesquisar quando chegasse no escritório onde trabalho, ali em
frente, apontando para o espelhado prédio do outro lado da rua. Ela,
demonstrando interesse, perguntou o que fazia, e eu respondi que era um
advogado sem identidade: não defendia ninguém, ajudava os advogados a
defenderem os outros. Certamente sem entender, sorriu, e percebi que o sorriso,
os olhos e o capacete formavam o mesmo ângulo oblíquo. Era a simetria perfeita.
Devolvi a pergunta, e
ela me disse que cursava doutorado em Letras na UFRJ enquanto trabalhava, sem
pressa, em seu primeiro romance, cuja história seria sobre uma mulher confusa
que teve diversas decepções amorosas e tinha o sonho de ser escritora. Sorri e
percebi que não só estava feliz pelo acidente, como, em poucos segundos, tive
uma mudança completa de percepção de mundo: existe Deus; existe destino;
domingo eu vou a missa – não poderia ser o acaso: estou diante do meu grande
amor.
Em resposta, disse a
ela que eu mesmo escrevia, mas nada sério, alguns contos e crônicas bobas em um
blog de internet, certamente nada que se equiparasse ao grande romance
que ela viria a escrever e o qual eu, certamente, seria ávido leitor. O nome do
meu blog, contei, era umpoucodenadae, quem sabe ela, num
intervalo da sua escrita, quisesse se distrair com algo mais tolo. Pegou o
celular do bolso escondido da legging e anotou, fazendo juras de leitura futura
e se dizendo feliz por encontrar alguém que também gostasse de literatura, algo
raro hoje em dia, como ela já tinha reparado pelo livro que eu esquecera no chão
após fugir da minha mochila na queda, Sunset Park, do Paul Auster, escritor
que adora mas cuja obra não se aprofundou, tendo lido dois ou três livros – e nenhum
deles era Sunset Park.
Surgiu um breve silêncio,
o primeiro desde o início da interação, e senti algo precisava ser feito. Na
verdade, senti que ela esperava que fosse feito algo. Crente em Deus e
no destino, não titubeei: já estava tudo desenhado, bastava eu seguir os
rabiscos que Ele havia feito para mim. Perguntei-a, então, se morava por perto,
ao que respondeu que sim – estava, inclusive, indo em direção a sua casa, na
Borges de Medeiros, quando me acertou, sendo esse o trecho final do trajeto de pedalada
que, todos os dias, percorre sozinha. Antes de efetivamente convidá-la para
sair, examinei, apesar do rosto jovem, seus dedos anelares, a conferir se algum
anel ali se escondia – mas não. Deus, realmente, desenhara isso para mim. Eu
também era merecedor de um destino.
Sem muito rodeios,
certo da resposta, perguntei por que não aproveitar o acaso e almoçarmos
juntos, quem sabe dali a uma hora, dando tempo para eu me situar no dia no
escritório e ela tomar banho e trocar de roupa em casa. Antes de todas as palavras
terminarem de sair da minha boca, já vivia na mente aquela segunda-feira
maravilhosa: um almoço prolongado, falando sobre as perspicazes ideias dela
para o grande romance que escreveria, o que se estenderia até o café, do café
ao jantar e do jantar – por que não? – até o café da manhã de terça, na Borges
de Medeiros, que é bem perto do meu escritório e de onde nos dois estávamos
naquele momento. O desenho estava completo. 
Parei de falar e ouvi silêncio,
que foi irrompido, primeiro, por outro silêncio: seu rosto, antes sorridente, vagarosamente
passou a gargalhar. Barulho. Seus olhos, já quase fechados, se fecharam de vez.
Seu fino nariz se enrugou. As mãos subiram aos olhos, contraídos, e seus dedos
indicador e polegar apertavam a raiz de seu nariz. Não parava de gargalhar. Eu,
antes sorridente, sumi com meus dentes. 
Quando ela, enfim, voltou
ao seu semblante normal, ao seu estado natural de quase-riso, explicou que,
infelizmente, naquele dia não poderia: sua noiva, Layla, aguardava-a em casa para
almoçar com sua filha adotiva de um ano, Julieta. Faziam, naquela segunda, seis
anos que as duas se conheceram, pelo que tinham combinado de almoçar seu prato favorito:
frutos do mar ao curry, especialidade, pelo que me foi dito, de Layla. Qualquer
dia poderíamos tomar um café, disse, quem sabe no próprio Zona Sul que fica em
frente ao meu escritório; ficou animada com a ideia de um novo interlocutor, que
também escreve, para o seu romance e dissertação.
Que legal ela ter uma
noiva e uma filha, disse, imagino que sejam muito felizes. Fiquei sem palavras,
mas foi o insubstituível silêncio durante o breve caminho de retorno ao ateísmo.
Sem saber lidar com a mudança de perspectiva, topei o café, e, sem ter muito
mais a dizer, olhando para o meu pulso direito que, naquele dia – e em todos os
outros – não estava coberto por um relógio, disse que precisava seguir para o
escritório. Acenamos as mãos e, sem trocar telefones, endereços, nomes ou nada
que nos pudesse identificar um para o outro a não ser o pouco criativo nome do
meu blog, prometemos, à distância, que marcaríamos “aquele” café.
Cheguei ao concreto
que fica ao lado do canal e vi, de frente, meu prédio espelhado. 
Olhei para baixo, e deparei
com um joelho vermelho de sangue e uma mão cuja palma se arranhou. 
Ateu, segui para o
escritório e pensei: que bom que é segunda, há muito a organizar.
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