No tempo

 

No tempo

Difícil precisar o dia, mas o mês era março, e aquela aura de final de verão — calor, chuva, pessoas bronzeadas, reencontros — tangenciava tudo. Ninguém imaginava que dali a duas semanas o mundo se fecharia e viver ficaria sob condição suspensiva, como se houvesse uma fila de sete bilhões de pessoas em frente à bilheteira de um cinema, esperando o sinal verde para entrar. E que essa fila permaneceria imóvel por mais de um ano.

Formou-se a fila: um vírus mortal que surgiu do outro lado do mundo se espalhou, e tudo mais parou. De repente, março deixou de sê-lo, e todos os meses perderam sua identidade – de casa, é impossível dizer quais flores são de outono e quais são da primavera. Paradoxalmente, mesmo diante dessa aridez, as lembranças se fazem mais vívidas do que as de outros tempos; talvez por falta de competição: pouco acontecia.

Os dias pareciam cadeiras parte de uma roda gigante que circulava o ar continuamente, como se o maquinista responsável por a parar tivesse ido tomar um café e se perdido na volta. Sentado, restava olhar para a mesma paisagem circular: a casa e a família. Para alguns poucos, normalmente jovens, havia também as-namoradas-que-moram-em-outra-casa.

Solitário, cobiçava a realidade daqueles que podiam ir a outras casas, almejando aquela salvação. E o fazia ciente das dificuldades: a suspensão do mundo levantava uma parede de possibilidades também para um casal: não havia nada para fazer. Elucubrações de um invejoso – só precisava de uma namoradinha para aliviar a tensão da reclusão, que me separava dos outros – e de mim.

Se uma namorada tivesse, tudo teria sido diferente. Seria capaz de sentir as estações, para muitos misturadas, cada uma a sua maneira. Quando chegasse maio, perceberia o frio. Ao sair de casa nos finais de semana, os casacos viriam ao corpo, seguidos por calças largas. No verão, saberia exatamente quando colocar a sunga. Seria capaz, inclusive, de mesmo após um dia nublado, dormir sem camisa e de protetor solar, antecipando com precisão o sol do dia seguinte.

Às sextas-feiras, passaria as tardes assistindo diretores proibidos, como Polanski — para sentir o perigo da reprovação, se descoberto, e expurgar o desejo de fazê-lo por provocação quando acompanhado. Escolheria Ghost Writer, um filme que nada tem de especial, mas antecederia o encontro, tornando-o memorável – como é o último ato do ator no camarim antes de subir ao palco. O ambiente isolado e erguido no meio da neve. O sofá confortável, o escritor com roupas adequadas ao frio, a cozinha acoplada à sala. O clímax, aquele fim forçado para quem precisa sistematizar até uma obra de arte, seria esquecível. Mas não o final: televisão desligada. Pronto para sair.

Vestiria um casaco azul, largo e confortável, como um retalho de cobertor. Calça preta e simples de moletom. Meia, chinelos. Iria assim. No carro, ouviria João Bosco: "Quando o Amor Acontece", "Jade" e "Saída de Emergência", transformando-as todas numa só: Saída de Emergência, Jade: Quando o Amor Acontece. Murmuraria as letras por baixo das máscaras, inúteis. Pegaria a Avenida das Américas, pois só por ela conseguiria sair de casa de carro, independentemente da direção. Ela moraria na Gávea, na Marquês de São Vicente.

Quando chegasse, estacionaria na Rua Manoel Ferreira, uma quadra à frente, para não atrapalhar o trânsito na Marquês com manobras súbitas. Andaria sem pressa até o sinal. Obedecendo o verde, atravessaria. De longe, o porteiro já reconheceria aquele caminhar azul e abriria a grade antecipadamente. Cumprimentá-lo-ia com um aceno, para equilibrar a inexpressão da máscara.

Pensaria em subir os quatro andares de escada, mas, antes da imprudência, refletiria: já seria o suficiente para me fazer suar. Optaria pelo elevador, onde, com certo desdém, encararia no espelho minha máscara quadriculada, a imensidão da minha barriga marcando o casaco enorme, meu cabelo grande e desarrumado, minha barba disforme.

Ouviria o barulho do elevador chegando ao andar e, ao empurrar a porta, me depararia com um corredor mal iluminado, que traria consigo, escondida, uma porta prateada para jogar o lixo — a qual, obcecado por sacos limpos nas lixeiras de casa, usaria após toda refeição.

Enfrentaria o escuro: muitas portas, uma ao lado da outra. Ciente do caminho, ficaria parado, e o corredor deslizaria por baixo — eu para frente, as portas para trás. Veria a campainha, amarelada; não precisaria apertar. O 406, com o zero descolado, oblíquo, iria aos poucos para trás. O gato, que aprenderia a gostar, me receberia primeiro, por baixo. O sorriso, escondido atrás da porta, viria depois e se misturaria com meu peito.

Mas isso, claro, só se eu fosse sortudo e permissivo. Duas coisas que nunca fui.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Na Praia

  Na Praia Chego ao Sul da França, em Nice, e logo me assusto: o caminho para o mar é feito de pedras, pedras grandes, pedras esteticament...