Eu Encontrei A Camila Pitanga

 


Poderia ser o nome de um curta em exibição no MUBI, como outro dia assisti “Sonhando acordado de forma vívida sobre nossas férias na Espanha”, mas acho que faltam adjetivos. Poderia ser mentira, como muitas vezes me ocorre prosseguir. Poderia ser uma mentira que virou um curta em exibição no MUBI, o que seria uma conquista estilosa. Mas é menos que tudo isso. É um fato: eu encontrei a Camila Pitanga.

Foi no Zona Sul da Pacheco Leão, no Jardim Botânico. Melhor: foi no bicicletário em frente ao Zona Sul da Pacheco Leão, ao lado da banca de jornal, perto do meio fio, longe dos prédios e exatamente às dezenove horas e treze minutos que eu encontrei a Camila Pitanga. A lua era cheia, Camila usava camisa branca, short de academia e capacete de ciclista. Eu estava de roupa.

Havia acabado de comprar uma lata de leite ninho em pó para um menino que me repete esse pedido há meses. Atendi o garoto e comprei, também, dois chocolates – um para ele e outro para mim – pois não faria sentido apenas ele ganhar presente. Afinal, a caridade foi minha, e eu merecia alguma coisa. Não titubeei: para ele um suflair, para mim um crunch, e para nós dois a sensação de dever cumprido.

Pagamos (considerando seu apoio moral em meu cangote) naquelas máquinas automáticas, exterminadoras de emprego e que sempre me dão uma vontade danada de me autoconceder um desconto: volta e meia compro sanduíches feitos pelo mercado que nunca passam o código de barras. Tenho que digitar o número que o identifica para que o preço seja processado, e sempre olho ao redor para ver se há alguém à espreita; se seria possível, se eu quisesse, digitar qualquer coisa e levar um satisfatório sanduíche no pão ciabatta, com muçarela de búfala e presunto parma a – literalmente – preço de banana. Sempre posso, mas nunca quero.

Preço honestamente pago e saímos do mercado. Me despeço do garoto, cujo sorriso me lembra o do Ronaldo Fenômeno – uma leve protuberância nos dentes e um olhar meio infantil –, e o seu adeus derrama em mim muitas bênçãos, fazendo com que eu me sinta como me sentia ao sair da missa, criança, quando o Padre dizia para eu ir em paz, ordenando o Senhor a me acompanhar. Quando ia com meu tio, não tinha lá muita paz, mas um senhor me acompanhava. Tolo, pensava que o Padre falava só para mim.

Caridade realizada e, sem mais nada para me ocupar, devoro a barra de chocolate. Aqueles flocos de arroz que não tem gosto de nada mas mudam o sabor de tudo em poucos segundos já não existem mais. Pronto para fazer sinal para o taxi, lembro-me, antes, de jogar fora a embalagem, e rumo à lata de lixo que fica ao lado do bicicletário.

De cabeça baixa, enrolo o papel do crunch nos dedos, pois o tempo de um lugar ao outro precisa sempre ser ocupado por alguma tarefa. Quando subo o queixo, estou no bicicletário. E no bicicletário está Camila Pitanga, brigando com a correia de sua bicicleta. Passo por ela, jogo meu papel no lixo e, ao voltar, cruzamos olhares. Como o menino, seus olhos castanhos me pedem ajuda. Com as mãos escuras de graxa e a correia da bicicleta solta, penso por que raios aquela mulher não tem uma bicicleta elétrica. Exercício físico, só pode ser, esses padrões estéticos de novela são exigentes.

Dois segundos duram dois dias, mas uma hora nossos olhos se descruzam e eu me distancio sem oferecer qualquer ajuda. Com vergonha de mim, apresso-me para a lateral do Zona Sul, e fico ao lado dos entulhos, esperando passar um taxi que me tire dali. Vejo um Chevrolet amarelo e acredito, naquele momento, que todos os taxis que já andei na vida foram Chevrolets. O destino me faz fiel. Abro a porta, entro, e fico feliz que há um insulfilme forte nos vidros: estou escondido do mundo.

Peço para ir à Rua Miguel Pereira, no Humaitá, onde faço análise. O sinal está fechado e, do meu esconderijo, olho sem pudor Camila brigando com a correia por mais alguns instantes. Irritado, confesso ao taxista:

– Camila Pitanga ali, chefe. Tua esquerda. Bike dela quebrou... foda! Sou o Pedalada, mas não sei andar de bicicleta, sei nada disso. Não deu para ajudar.

O homem, sem entender, dá prova de porque o táxi é sempre a melhor opção:

   – Jardim Botânico, Pedalada. Camila Pitanga tá aí direto. Na próxima tu ajuda ela.

Antes de abrir o sinal, mudo de ideia e comunico: vamos à Barra. Mando mensagem para minha psicóloga e desmarco a sessão.

Fica para semana que vem; na próxima ela me ajuda.

 

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