No mudo


No mudo

Ao olhar para cima para espiar a janela de seu apartamento, esbarro em um céu com poucas nuvens, estrelas ofuscadas pelas luzes dos prédios e uma lua escura. É um céu desprovido de função. Tiro os olhos do alto, coloco-os para frente e dou de cara com uma dúzia de prédios que, acesos, complementam o viaduto que estou, construindo uma só forma. Abaixo estão os carros, que vão e vêm em mão dupla, sem se encostar, em velocidades opostas - exercem o que lhes cabe. Se os carros também pudessem olhar para cima para enxergar o céu, as nuvens, as estrelas e os prédios que os limitam vertical e horizontalmente, surpreender-se-iam ao constatar que as pessoas também são capazes de ir e vir em mão dupla e cruzar-se em velocidades opostas sem se encostar.

O viaduto é esburacado e tenho de olhar para o chão com constância para certificar de que piso em solo reto. Os buracos tornaram-me atentos, adotando uma postura ativa perante o caminho, reparando ao redor. Antes era como se andasse seguindo uma reta imaginaria até a porta, como se precisasse chegar lá com urgência. Como se a qualquer momento pudesse não haver mais portão, elevador, corredor ou porta para eu entrar. Até o dia em que tropecei, carregando sacolas de supermercado, deixando cair lá embaixo tomates, cebola, alho e outros legumes. Por sorte não levava nada de vidro ou pesado, apenas orgânicos, e o acidente não atingiu ninguém. Desde então, meus olhos caminham fazendo o sinal da cruz: olho para cima, para baixo e para os lados. Quando, no meio, sinto vontade de reparar algo fixo, paro de imediato. Carros, viadutos e prédios em complementação: eis o resumo dessa cidade, posso voltar a caminhar.

Sigo sem saber se está em casa, pois costuma voltar tarde do trabalho. Sempre tarde, como se eu não estivesse a caminho, como se a casa, comigo, fosse o trabalho que deseja escapar. Interfono para ver se há resposta. Silêncio. O prédio tem um aspecto velho, mas bem conservado. Não tem porteiro, posto absolutamente dispensável, já que o portão alto, com grade cinza, densa e vigilante exerce o papel de controlar o tráfego de pessoas no edifício.

Tenho a chave e posso subir. Busco-a no bolso, mas hesito. Tenho a chave e posso subir, trago comigo duas sacolas verdes preenchidas com manjericão, massa fresca, extrato de tomate, queijo de cabra e algumas coisas de casa, como papel toalha e detergente, pois a limpeza da cozinha é algo mais impessoal, que me cabe auxiliar. Tenho a chave e posso subir, mas não gosto de fazê-lo. A chave que tenho é minha por ocasião. Tive de cuidar do gato por alguns dias, enquanto viajou de férias, e comigo ficou. Olho fixo para o portão cinza e digo que vou para o quinto andar. Não, ninguém me espera. Giro a chave e entro.

Pego o elevador, velho, mas funcional, salto e viro à esquerda ou à direita, o que depende sempre do elevador que escolho, e tenho dificuldade de me localizar. Sigo o corredor longo e escuro que antecede a porta. Mal iluminado, faz parecer que o caminho até a casa é interminável. É a última porta do andar, e, para mim, a escolha pelo apartamento derradeiro fora proposital, para lembrar que até para chegar em casa é preciso certa paciência. Apesar da escuridão, estou acostumado com o trajeto e sei onde piso, o que me permite passar os olhos, uma a uma, nas portas dos vizinhos. Difícil compreender os detalhes, todos escuros, mas vejo que a base de certas portas já se encontra picotada, pedindo um reparo; em outras a maçaneta está quase descolada da estrutura; e, em algumas mais, estão esquecidos adereços de Natal, pois (ainda ou já) estamos em janeiro. Penso como lugares significam coisas diferentes para cada pessoa: para mim, onde estou não passa de um corredor escuro; para outros, é o caminho para a casa. Há pouca luz, sempre, mas hoje parece pior, e não sei se a ausência é minha ou do ambiente. Há muito pouca luz.

Giro a chave na porta e o gato, apesar de pesado, tenta correr até mim. Vem aos meus pés esfregar-se, e eu aceito seus pelos brancos que, pela proa de sua cabeça, encostam em meus dedos. Como se ela se soubesse incapaz de receber-me apropriadamente, prefere se atrasar, deixando o trabalho para o gato. Esforço inútil. Já me habituei ao cálido beijo na bochecha que escapa do rosto inexpressivo, junto do sorriso labial e daquele olhar de quem procura alguma coisa perdida no chão. Enquanto não chega, pego a sacola do supermercado e separo o que trouxe: tiro a massa fresca, o manjericão, o queijo de cabra e pego um azeite, guardado na despensa; ficam todos na pia. Deixo a sacola com o detergente, o papel toalha e o sabão de coco em cima da mesa que fica colada na parede.

Antes mesmo de voltar à sala, ouço o barulho da maçaneta. Digo que estou aqui, ela não responde, coloca apenas a cabeça na porta da cozinha e diz que precisa ir para o banho. Sem surpresas, pego o Ortega Y Gasset que está no bolso de meu casaco, direciono-me ao sofá e manipulo o tempo até que eu não tenha mais nada a fazer a não ser abrir o livro para ler. Ouço a água cair e calculo, mentalmente, dez minutos, que é o tempo que costuma demorar no banho. Os cabelos, lisos e curtos, demandam menos capricho que cabelos grandes, mas sei que o barulho da água a distrai, como muitas coisas o fazem, e os dez minutos são, no final das contas, uma regra. Lembro que tomávamos banho juntos e sentia-me a apressá-la, mas pensava ser imperceptível. Até o momento em que, ao me ver parado, em pé no box a olhá-la fixamente e sem nada a fazer, disse: “para que?”.

Desde então, toda vez que entra no banho faço o que posso: fecho os olhos, imagino a água caindo sob seu rosto, os cabelos lisos e frágeis indo para trás, seus olhos se fechando, a oleosidade de sua pele misturando-se com a água, e as mãos ajudando o caminho dos fios para a nuca. Imagino a água que entra um pouco pela sua boca fina e é expelida com jeito, e, num ritmo, cai sobre o queixo, deslizando depois para os seios e se perdendo em todas as outras gotas d’água que caem em seu corpo. Sinto ciúmes. A torneira se fecha, meus olhos se abrem, e ajo como se estivesse, de alguma forma, também molhado. É possível viver oniricamente, penso, acho que é por isso que ainda estou aqui.

O banheiro é escondido da vista do sofá, de modo que, quando ouço o girar da maçaneta, inclino meu corpo levemente à esquerda para espiá-la sair. Envolta em curta toalha, que lhe cobre a partir dos seios até o começo da coxa, caminha dois passos na ponta dos pés até o quarto, como se fugisse. A toalha, curta, parece não querer nada cobrir. Vulnerável, penso em segui-la ao quarto, arrancar-lhe a toalha, abrir minha mão com força, espaçando meus dedos ao máximo, e espalhá-la sobre seu corpo, tendo-o sob meu controle. Menos eufórico, concluo que preferiria tê-la mesmo com a toalha, para, com uma mão apoiada na cama, colocar a outra entre o corpo e o pano, surpreendendo-a com a furtividade que é inerente ao meu desejo. Seu rosto inclina-se para cima, os olhos se franzem, e sua boca, mecanicamente, sobe até a minha. Quando lembro de minhas mãos, a porta do quarto se tranca.

Percebo-me no sofá, reparo-o branco e estreito e, concluo, dele desgosto: curto demais, com mais almofadas em seu encosto do que espaço para se sentar, e, na horizontal, também pequeno demais para se deitar. Sufoca-me estar nele, suponho-me um invasor, pois parece que sua função é decorativa e não o conforto; se gosta mais quando está vazio. Fico de pé e vejo a televisão, cujo tamanho é proporcional ao sofá: tudo aqui é feito para um. À esquerda há uma prateleira, com poucos livros, alguns adereços, nada significante. À direita fica a janela, retangular, envolta em uma moldura prata, e que, ampla, ocupa boa parte da parede. O enquadramento é ideal, e arrisco dizer que a janela era janela antes de sê-la. A parede veio depois. Mesmo antes da subida do prédio, apenas por aquele retângulo seria possível ver-se tudo lá fora A parede se moldou àquele espaço, e não o contrário. As coisas, assim como os humanos, também são dotadas de um certo propósito.

Já são três anos neste lugar. A casa é a mesma, fora a adição de alguns quadros, outros adereços laterais e uma única mudança de cor: a sala foi pintada de um rosa claro, quase salmão, que combina com o gato branco. Ela mudou ainda menos: seus cabelos são sempre curtos, indo no máximo até o ombro; ganhou olheiras, que lhe fazem bem: combinam com sua cicatriz no lado esquerdo do olho e não fornecem qualquer aspecto cansado. Seus lábios são do mesmo tamanho, formando curiosa simetria. Quando sorri, os olhos se espremem e o nariz, pequeno, fica todo enrugado. Há harmonia e beleza em seu rosto, e seu corpo o segue: seios médios, nádegas médias, tronco médio, pernas médias. A impressão é de que tudo foi posto ali com cautela, como um arquiteto faz o projeto milionário de uma casa nova à beira do mar, ou como, mais provável, Deus resolveu pô-la neste mundo.

Não sei há quantos minutos já chegou, mas sinto que estou esperando há muito. O ambiente me parece esgotado, e só me resta ler Ortega Y Gasset. Faz três anos que a entreguei meu tempo, pelo que o seu tempo passou a ser o meu, e hoje vivo sob a guia de dois relógios diferentes. Disso resulto-me sempre adiantado ou atrasado, mas nunca na hora. Para as coisas dela, adianto-me demais. Para as minhas, atraso-me. Uso os relógios errados.

Ouço a maçaneta da porta do quarto, e, durante cada um de seus cinco passos até a sala, penso em lhe dizer tudo o que grita sobre nosso silêncio. Não o faço, e apenas coloco o livro de volta no bolso. Muda, vem até o sofá e se senta ao meu lado. Encostamo-nos, como é inevitável, e ela pega o controle para ligar a TV. Coloca a mão esquerda em minha coxa direita, peregrina pelos canais, e escuto o gato miar ao sair da cozinha, juntando-se a nós. Seus dedos começam a acariciar minha perna, um de cada vez, depois todos juntos. Passo meu braço ao redor de seus ombros, e ela encosta a cabeça em meu peito. Com a outra mão acaricio seu cabelo, e ela ajeita a cabeça para facilitar meu ângulo. Olho seu pijama, camisa larga e um short curto que se contenta em apenas contornar sua virilha. Seus dedos continuam a mexer em minhas pernas, às vezes puxando os pelos. Minha mão vai do cabelo à perna, despida, e repouso a palma em suas coxas. Traz a mão à minha para logo depois retirá-la, como se apenas quisesse garantir que sou eu que estou ali. Decide um filme e ajusta o corpo no meu. Não falamos palavra.

Escolhe um filme do Jim Jarmusch, o que me surpreende. Eu adoro, ela não. Ao final, sai do meu tronco virando-se para mim, coloca as duas mãos em minhas bochechas e me beija. Acompanho seu ritmo, um pouco musical, até que encontro a brecha para colocar a língua em sua boca. Ela retribui, com os olhos fechados, e contorce o rosto para encaixarmo-nos perfeitamente. Minha mão vai à sua nuca e passa pelos cabelos. Coloco suas pernas a meu redor e decido: vamos ao quarto. Jogo-a na cama e o seu pijama no chão. Redescubro suas pintas, seus sinais, suas espinhas, suas marcas. A redescubro. Tenho-a com vagar, lado a lado, e comunicamo-nos pelas expressões do nosso rosto. Beijo-a por inteiro, os ritmos se alteram, e ficamos assim até cansarmos.

São horas em silêncio, que apenas se rompe quando, já não mais um só, ela vira, sem me encostar, e indaga por que continuo vindo aqui; por que aceito esse silêncio que tanto me corrói; por que permito que a primeira coisa que me diga depois de uma noite inteira juntos seja, simplesmente, “por que”?

Sob controle, sorrio. Tomo-lhe as mãos, beijo sua boca e, com meus polegares, acaricio suas pálpebras para baixo, para que feche os olhos e durma. Viro-a para o outro lado, envolvo meus braços em seu corpo e dou um único beijo em seu pescoço. Sinto os seus batimentos. Dormimos. Acordo cedo no dia seguinte e preparo nosso café, que tomamos em silêncio. Lá fora está o céu sem lua, estão os carros, os prédios, os buracos, o viaduto. Igual estiveram ontem, como estarão amanhã. Pouco me importa. Bebo um gole do café, olho para ela, sinto o gato em meu pé, acaricio-o, vou ao sofá e tenho espaço. Ligo a televisão e coloco uma música.

Quando me levanto, vou direto à porta: abro-a, pego o elevador, abro o portão cinza por dentro, tropeço nos buracos do viaduto. Volto, tropeço de novo, encontro o portão cinza fechado, ultrapasso-o, pego o elevador, passo pelo corredor e destranco a porta.

Sento no sofá. 

Ouço a água bater no chão do banheiro e sorrio.

Dez minutos.

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