Tenho para mim que o que fica na vida não são,
necessariamente, as melhores experiências, mas as inesquecíveis. E as
experiências inesquecíveis concentram-se na infância, época na qual a ideia de
novidade acentuam-nas todas, tornando-as sempre encantadoras ou assustadoras. O
tempo passa e fica difícil adjetivar o que se vive. As coisas deixam de ser
encantadoras ou assustadores, tornam-se prementemente esquecíveis, e o que
resta é fazer uso da traiçoeira memória. A minha madeleine, por
exemplo, é água com gás: a primeira vez que bebi água com gás foi na Lagoa, e
chorei incessantemente por vários minutos, assustado com aquele amargor que não
imaginava existir. Minto, pois não me lembro do que senti, tinha apenas dois
anos, mas imagino perfeitamente como foi de tanto que já ouvi essa história.
Acho-a uma graça, e, no âmago, queria poder sentir o gosto amargo da água com
gás – que hoje gosto muito – pela primeira vez novamente. Minha memória, ativa,
permite diversas lembranças da infância, todas marcadas pelo meu excesso de
energia, algo que certamente não tem qualquer influência genética.  Minha mãe,
calma como um lago nórdico, volta e meia diz que teve de se forçar a socializar
no começo da minha vida para que eu não fosse criado de forma isolada. Sobre
meu pai, basta dizer que ele estudou música clássica, sozinho, por quase duas
décadas. Pensando bem, talvez seja por isso que vim como sou: peguei o estoque
reserva de agitação deles e coloquei tudo em mim, para nunca mais devolvê-los. 
Morando na Rua Pio Corrêa, a qual, recordo, meus pais
insistiam de chamar de “rua sem saída”, no Humaitá, tive uma infância feliz. Foi
naquela rua e nos arredores do prédio Colibris que descobri que era um menino
talentoso, que podia rir e fazer os outros rirem, e que conseguia, com êxito,
obter aquilo que mais desejava com certa facilidade: a atenção alheia. No meu
caso, era a atenção dos adultos, amigos dos meus pais, que eu mais almejava. Às
sextas e sábados sentavam-se religiosamente à mesa do coffe shopp do
prédio, onde bebiam e falavam sobre assuntos que eu não entendia, mas sabia que
eram assuntos de adultos, hierarquicamente superiores aos meus, de criança. Nós,
enquanto isso, éramos relegados a brincar na parte do play em que
ficavam os brinquedos, com as respectivas babás. Eu não tinha babá, então minha
mãe, às vezes, se deslocava para lá para me supervisionar, trazendo consigo aquela
aura cuidadosa que jamais sairia de perto de mim, nem acho que um dia sairá. A
verdade é que foram raras as vezes que mamãe precisou ir aos brinquedos mais de
uma vez, porque eu logo me cansava das outras crianças e queria me juntar aos
mais velhos. Já com cinco anos me recordo de pairar ao redor da mesa, ansioso,
esperando o momento certo para falar alguma coisa e transmudar a atenção
daquele pessoal para o pedaço de gente que precisava esticar o pescoço para que
os olhos ficassem acima da linha da mesa. Não sei como chegava ao raciocínio para,
na maioria das vezes, me intrometer da forma certa, mas costumava fazê-los rir.
Uma jogada clássica era pedir-lhes uma azeitona e reclamar do sabor azedo, fazendo
careta; ou pedir mais e reclamar do caroço, que eu fazia questão de morder. Por
um tempo, quando eu chegava, os amigos dos meus pais já me chamavam de “zeitona”,
espertos para minha estratégia. Passei a adotar novos planos de ação, e, quando
as cartadas falhavam, chegava a revelar peculiaridades da relação dos meus pais
sem saber que poderia sê-los constrangedor – ou, mesmo sabendo, optava por fazê-lo
–, e conseguia, ao menos por um tempo, ter o riso de todos novamente. 
O play do prédio, apesar de tudo, tinha pouco espaço – e essa foi uma das coisas que menos senti falta da Zona Sul após me mudar para a Barra, aos sete anos –, o que começou a me incomodar quando me tornei fissurado por futebol. A falta de interesse do meu pai pelo esporte foi incapaz de impedir que eu me apaixonasse. Todo mundo falava sobre aquilo em algum momento; e logo percebi que o futebol era o meio mais fácil de eu entrar no papo dos adultos, que eu tanto almejara.
Foi em 2004 a primeira vez que fui ao Maracanã, quando entrei
em campo de mãos dadas com o Rodrigo Tiuí, jogador esquecível do Fluminense, clube
para o qual eu viria torcer, majoritariamente, pela influência de Mateus,
colega de creche na Rua Professor Saldanha. Me lembro quando, em 2005, o
Fluminense ganhou de dois a um da Ponte Preta, com gol decisivo de Tuta, que
tinha quebrado o nariz pouco tempo antes da partida, o que o obrigou a jogar
com uma máscara de proteção. Numa metonímia heroica, vi em Tuta meu Batman e,
por uma semana, desci para o play do prédio para jogar futebol com uma máscara
do Batman que tinha em casa, fingindo ser o Tuta, que era maior que qualquer
coisa que o Stan Lee ou sei lá quem criou o Batman pudesse inventar. Sobre o meu futebol, inesquecível foi a primeira vez que alguém reconheceu que eu levava jeito
para a coisa: brincando de trocar passes com Vineba, amigo meu gordinho e
carente, três anos mais velho, que morava no primeiro andar do prédio, no 103,
usei a parte externa do meu pé, fazendo a bola encobrir, cheia de efeito, um
pequeno balanço que ficava no meio da grama sintética que protegia os
brinquedos do chão. Jadir, amigo do meu pai que assistia, se assustou: “Cacete!
De trivela!”. Foi, enfim, meu primeiro passe de trivela, que eu aprendi
assistindo Super Campeões, desenho japonês que passava na televisão e mostrava
a história de Oliver Tsubasa. Curiosamente, Trivela seria o nome de um
campeonato que depois marcaria uma geração de amigos e o início efetivo da
adolescência, quando fomos campeões, ao final do primeiro ano do Ensino Médio,
em cima de um forte time da Rocinha. 
Perto do prédio ficava a creche em que me alfabetizei, para
onde eu poderia ir andando, com pai ou mãe, ou de carro, com o pai. Foi na
creche que tive a primeira percepção da minha sensibilidade – ou perspicácia, o
que seja; sempre vou achar que entender é um ato de sensibilidade, porque
primeiro é preciso captar o outro para, depois, captar o que ele quer dizer. As
coisas de fato vinham fáceis para mim. Na alfabetização minha mãe recebia bons
elogios, mas não demonstrava euforia. Em contrapartida, lembro de ver a mãe do Caetano,
avoado menino que estudava comigo e que, depois, também se juntou a mim nas
quadras de futsal da Casa de Espanha, olhá-lo com uma cara dura; ele um pouco
triste. Sentia-me mal por ele, sem entender por que sua mãe ficaria chateada num
momento em que a minha estava contidamente feliz. Coisas de criança, eu devia
achar que todas as mães e filhos eram iguais. Em geral, o Atchim – nome da creche
– era uma instituição progressista. Tínhamos yoga duas vezes na semana,
relances de informática, o ensino era paciente e tudo tinha uma lógica meio
comunitária. Minha mãe adorava a creche, meu pai, mais duro pela vida, nem
tanto. Talvez fosse pela localização, pois, numa das coincidências que nos
fazem crer no destino, o Atchim, que ficava na Rua Professor Saldanha, estava a cem
metros do Centro Espírita em que meu pai morou, por quatro anos, quando chegou
ao Rio de Janeiro para estudar música na UFRJ. Não sabia disso quando, depois
que a empresa em que ele trabalhava faliu (a NEC, japonesa de telecomunicações
que não se segurou após a privatização), e ele passou a me levar à creche a pé
ou de carro todos os dias, admirava-o encarando aquela casa de aspecto
nebuloso no começo da rua como se fosse o nosso destino; e não a creche. Nas
primeiras vezes, numa demonstração precoce da ansiedade que viria, um dia,
tomar conta de mim, ficava nervoso, talvez inconscientemente pensando que meu
pai, por estar agora em casa a todo tempo, estava ficando velho e já poderia
estar confundindo as coisas. Eu viria a sentir algo semelhante quando, nos anos
de Santo Agostinho, eu descia às 17h15 em ponto e, me esgueirando para procurá-lo
das escadas, não o enxergava à minha direita, me esperando. Em retrospecto,
acho que meu pai nunca se atrasou nem cinco minutos para me buscar. Certamente essa
lógica de ter sempre tudo ao meu tempo me tornou mais facilmente frustrável.
A creche passou, o agitado e sedutor Colibris foi ficando
meio murcho, os amigos saíram da Casa de Espanha, meu pai entrou num ciclo
depressivo sem trabalho, e, num impulso, decidimos nos mudar para a Barra, mesmo
comigo já matriculado no São Vicente, colégio que seguiria a linha progressista
da minha mãe, mais uma vez sob desconfiança do pai. A mudança foi absolutamente
repentina, feita em fevereiro de 2006, e eu tive de ser matriculado às pressas
no Bahiense, colégio que fica do outro lado da Avenida das Américas, quase em
uma linha reta do Novo Leblon, onde vim morar. No começo, tudo na Barra me
parecia farseco. Os amigos eram menos legais que na Zona Sul, os adultos eram
estranhos e diferentes demais dos meus pais. Os primeiros anos não foram
fáceis. Passava os finais de semana na casa do meu Tio Diniz, que já morava
aqui, vendo jogos do Fluminense com meus primos, especialmente o Rafael, que
dizia, desde que eu tinha sete anos, que um dia escreveríamos um livro juntos.
Eu gostava daquilo, sentia que ele era espetacular, capaz de enxergar a
sensibilidade que já gritava para sair de mim. No Bahiense tudo ia bem, mas as
relações não extrapolavam as horas curriculares. De todo modo, lá vivi momentos
importantes: foi no Bahiense que tive certeza do meu talento para o futebol, meu
cartão de visitas por muito tempo; e lá que quis ficar perto de uma menina pela
primeira vez, Adriana, loira dos cabelos brancos. Foi correspondido e eu me
sentia invencível. Tentei reviver isso anos depois, no curso da minha adolescência,
desesperado para me apaixonar, namorando três meninas diferentes nos três anos
do Ensino Médio. 
Eu não sabia, à época, que o nível de educação do Bahiense
tinha algo de mais benevolente com os alunos – certamente achava que em todas
as escolas se ensinava as mesmas coisas – mas ficava contente quando ganhava o prêmio
bimestral de melhor aluno da sala. Ganhei três vezes, perdendo a última para
uma menina que merecia, pois se esforçava e ficava ranzinza toda vez que eu
ganhava. Ao final do ano, à contragosto, fiz a prova do Santo Agostinho e fui
aprovado, com bom resultado em português (10) e medíocre em matemática (6), o
que viria a ser uma justa síntese da minha vida escolar.
Nos anos de Santo Agostinho percebi que meu pai passaria o
resto da minha infância ao meu lado, e logo tive de perguntar à minha mãe o que
dizer quando as pessoas me indagavam o que ele fazia. Ela falava para eu
responder que meu pai era aposentado, e assim eu repetia aos outros, crendo. Não
deixava de ser verdade, mas a aposentadoria era compulsória, o que obrigou
minha mãe a investir mais do que queria em sua carreira de concurseira, o que
ela fez com certo sucesso. Eu e meu pai compartilhávamos uma relação peculiar. Éramos
próximos – mas pouco tínhamos a dizer um para o outro. Eu não havia, ainda,
descoberto a música, que tanto nos aproximaria a partir do final da minha
adolescência. Criança, tudo para mim se reduzia ao futebol. Ele, absorto nos
próprios pensamentos e na frustração da carreira musical, não sabia me dizer um
jogador do Fluminense, tampouco seria capaz de elogiar meus toques de trivela,
o que me trazia uma ideia errada de falta de atenção. Em 2007, enfim, quando
entrei no Santo Agostinho, era meu pai quem fazia meu café da manhã e almoço, quem
me levava a pé na escola e quem me buscava, invariavelmente, às 17h15, sempre localizado
à direita da escada, num lugar mais distante dos outros pais, com um sorriso e
a mão direita levantada – necessariamente nessa ordem. Voltávamos à casa pelo “X”,
um caminho interno aqui dentro do Condomínio que conecta todos os prédios, e eu
ia subindo pelos trechos mais heterodoxos do caminho – “corrimãos” das escadas,
laterais das rampas, corria pelas pedras. Ele me dava a mão e, mesmo sem ligar
muito para essas aventuras, me acompanhava e não dizia nada. Pouco fazíamos um
ao outro, a não ser inseparável companhia. 
Foi em 2007, também, que engordei e virei mais “cheinho”, status
que ocupei até 2014, quando emagreci logo no começo do ano, na famosa “espichada”
e passei a chamar mais atenção das meninas. Eu era um candidato premium ao
bullying, com meu olhar bondoso e os quilos a mais, mas o futebol sempre me
salvou. Era considerado um dos melhores da série, que tinha mais de duzentas
pessoas, e todo mundo sabia que eu jogava bem – inclusive as meninas. Isso me
dava entrada fácil com todos os homens e rapidamente fiz amigos. O ambiente no Santo
Agostinho era predatório, muito diferente do Atchim e até do Bahiense, e, mesmo
com amigos, eu demorei a me adaptar àquele miniprojeto de Barra dentro das
grades verdes. Tudo bem, tudo certo, mas ali nascia uma sensação de
deslocamento que, mesmo nas épocas em que mais pertenci, sempre senti, quase como sequela do momento em que eu percebi que a maioria das pessoas nada
tinha a ver comigo – uma frustração imensurável para quem, no fim das contas, tinha
como maior desejo atrair os olhares de todos os seres vivos que cruzassem seu caminho.
O sobrepeso e a obsessão pelo futebol fizeram com que eu
deixasse as mulheres de lado até uns 13 anos de idade. Era como se eu negligenciasse
essa parte da vida, mesmo ouvindo já de meus amigos coisas que, hoje, eu
acharia absurdo ouvir de meninos de 10 ou 11 anos – mesmo sabendo que deve ser
ainda pior. Sempre fui inseguro com aquilo que não me pareceria óbvio ou
facilmente dominável, e assim foi com as moças. Chegou uma hora, imagino, que
os hormônios não aguentaram e eu comecei a me aproximar pelo caminho da amizade.
Por uma amiga, inclusive, me apaixonei. Quando a contei o que sentia, todavia, ela
me refutou sem titubear; disse-me que se sentia decepcionada e nunca mais tivemos
proximidade. Confesso que, na época, achei que seria mais traumático. Depois
que emagreci, as meninas passaram a se interessar naturalmente por mim: tinha
amigos, meu astral era alto, era reputadamente inteligente e, finalmente, estava
magro. Reconhecer o impacto dessa mudança estética adicionou à minha
personalidade a vaidade, que cultivo até hoje, na medida do que considero
aceitável. 
Chegaram as mulheres e a infância acabou. Enquanto escrevia
esses parágrafos alcancei o que desejava quando decidi iniciá-los: sentir resquícios
do que sentia quando criança. Me emocionei ao lembrar do chute de trivela por
cima do brinquedo, das redações na alfabetização, e da figura do meu pai me
esperando sair do Santo Agostinho, com um sorriso puro. Fui muito feliz quando
mais novo, inconsciente das minhas pretensões e absorto em uma ingênua busca pela felicidade.
Acho que é desse piloto automático juvenil que sinto falta. Não lembro quando me
disseram que ser feliz era subsidiário ou lateral, mas é assim que vivo hoje. Sempre
que viajo de férias, entretanto, ajo inconscientemente como agia aos sete anos:
cheio de ânimo, tento fazer o máximo de coisas que posso dentro de um dia, acreditando,
piamente, que quanto mais coisas fizer mais feliz serei, quase como se acumulasse pontos de felicidade por atividade realizada.
Nunca deixarei de sê-lo: aquele menino que rondava a mesa dos adultos, quase escondido embaixo dela, esticando o pescoço para poder enxergar o umbigo de quem estava sentado, esperando o momento certo para se fazer notar, para fazer todos rirem, para rir dos outros rindo, para ser, essencialmente, feliz.
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