Nos idos do Carnaval de 1998, minha mãe desfilou na Estação
Primeira de Mangueira – um ano antes, portanto, deste escriba vir ao mundo –,
escola cujo samba enredo tinha como objetivo homenagear o Homem, Chico Buarque
de Hollanda – o Chico Buarque da Mangueira – e sua obra. Há 25 anos atrás, fevereiro
de 1998, minha mãe e meu pai ainda não se conheciam. Esse fato é a primeira revelação
deste texto que peca pelo excessivo compartilhamento de informações íntimas: eu
fui um acidente. Em 1998, portanto, eu não era nem uma possibilidade. Pode-se dizer que minha existência não passava de uma chance.
A Mangueira foi a grande campeã do Carnaval daquele ano, o que, certamente, tornou a experiência da minha mãe ainda mais inesquecível. Contemporaneamente ao desfile, numa espécie de “obrigado!” que só cabe aos gênios, Chico lançou o CD “Chico Buarque de Mangueira”, no qual reuniu sambas marcantes que se relacionam com a história da Escola. Lá estão muitas interpretações que eu gosto muito: Chico cantando “Divina Dama”; a Velha Guarda da Mangueira em coro para contar da “Capital do Samba”; e, claro, João Nogueira entoando “Linguagem de Morro”. São três das minhas performances favoritas quando o assunto é samba, o que já é suficiente para tornar o disco um dos meus prediletos.
Após o desfile, minha mãe comprou o CD físico do 'Chico de Mangueira', mais como um souvenir daquele Carnaval inesquecível do que qualquer outra coisa. Não sei como foi, mas gosto de imaginar minha mãe em casa, sozinha, cantarolando os sambas buarqueanos que a levavam de volta aos momentos da Avenida. Não há nada mais humano que tentar reviver certos sentimentos; e eu gosto de tentar reviver os dela.
Poucos meses após o carnaval, em um ballet no Theatro Municipal, meus pais se conheceram. De lá, foram para o falecido Mistura Fina, na Lagoa,[1] e o resto é história: passados três meses minha mãe estava grávida e morando com meu pai, na Rua Humaitá, a aguardar minha chegada ao mundo. Como me lisonjeia perceber que, antes de nascer, eu tive o poder de mudar completamente a vida de outros dois seres humanos. Minha mãe, que morava em Botafogo, se juntou ao meu pai – um gaúcho que ela conhecia há alguns meses – apenas para se prepararem, conjuntamente, para minha chegada. O amor dos pais, já sentido sob a condição suspensiva do nascimento, é a razão para nossas prepotências imotivadas.
Meu pai não gosta de Chico Buarque. Acha os arranjos simplórios, prefere ouvir sinfonias, é capaz de ficar horas a fio vendo o Andres Segovia tocar violão. Da Bossa Nova e da Música Popular Brasileira, lhe apetecem apenas Tom Jobim, um pouco de João Bosco, Baden Powell – mas Chico Buarque não, de jeito algum. E era justamente o repertório do meu pai que eu ouvia por detrás da parede que me dividia do restante do mundo: sinfonias, jazz sincopado e violão clássico. Nasci e o hábito continuou: o mais próximo que chegava do Chico era quando meu pai me ninava ao som de Garota da Ipanema, na versão instrumental do Kenny G – ainda assim, nem o cheiro do lirismo buarqueano dava para sentir.
Muitas das minhas lembranças infantis são musicais. Em especial, lembro dos passeios que eu e meus pais fazíamos aos finais de semana, quando saíamos de carro da Humaitá para ir almoçar em algum lugar ou visitar algum parente, e meu pai colocava, na rádio do carro, álbuns do Segovia e ia acompanhando as músicas com batidas ritmadas no volante. Ficava olhando como as mãos dele acompanhavam perfeitamente o ritmo do violão, e não conseguia entender como uma corda e uma batida podiam ter o mesmo ritmo. Recordo-me, também, que quando o seu humor era excepcionalmente bom, a voz aveludada da Sade era a responsável pela trilha sonora dos passeios. Talvez tenha sido pela percepção dessa escolha a forma pela qual entendi que existe variação para o humor humano.
Depois de certo tempo, a vida acabou por nos levar à Barra, e na Barra – certamente
pensou meu pai, como pode você pensar também – não haveria Chico Buarque. Mas
foi na Barra que o Chico saiu do seu esconderijo e me deu alô.
Era uma aula de literatura, no 9º ano do Ensino Fundamental do Colégio Santo Agostinho, onde estudei. O professor, quem eu reputava cultíssimo, tinha a insensível mania de cantar enquanto a turma fazia alguns exercícios que ele passava. Prejudicava a concentração, mas, na maioria das vezes, eu conseguia abstrair. Num desses dias, entretanto, a letra que ele cantava me chamou atenção: era “Acorda Amor”, do Chico. Eu gostei, especialmente, dos versos nos quais o eu lírico dizia que, se seu sumiço durasse muito, sua mulher poderia “pôr a roupa de domingo” e lhe esquecer.
Achei engraçado isso de roupa de domingo e, mesmo sem entender muito bem o que significava, guardei. Levei aqueles versos para casa e eu fui ao computador para ver o que mais poderia descobrir do tal Chico Buarque. Coloquei os versos no google, encontrei a canção, a ouvi no youtube e fui descobrindo mais obras, aos poucos. A curiosidade é realmente um recurso.
Depois do mundo cibernético, decidi pesquisar no acervo musical aqui de casa. Na sala, meu pai guarda vastíssima coleção de CDs e vinis. Apesar
de nunca ter ouvido nada do Chico sair de lá, resolvi procurar. Numa busca
despretensiosa, acabei encontrando o CD da minha mãe, “Chico Buarque da
Mangueira”. Abri, peguei o disco e coloquei para tocar na caixa Philips que temos.
A primeira música era “Chão de Esmeraldas”, e ali fui introduzido ao samba
lírico buarqueano. Continuei ouvindo, e quando cheguei à “Divina Dama”
tive certeza de ter encontrado um negócio, ali, que jamais iria se
distanciar de mim. 
Seria o início de uma jornada que me forjaria
intelectualmente e moldaria por completo meu senso estético: na música, Chico;
na poesia, Chico; na literatura, Chico.
Hoje em dia estou em fase das menos Chicófilas que já tive: escuto João Gilberto sem parar e, quando preciso renovar, migro para o Tom Jobim – o que é, basicamente, ficar de saco cheio da praia do Leblon e ir mergulhar em Ipanema. Mas não importa quem eu esteja ouvindo. No fundo, estou escutando a voz do Chico, pois foi ela que me fez compreender as outras.
Chico Buarque e eu, eu e Chico Buarque, conforme fora predestinado pela minha mãe, no momento em que ela decidiu ir à Sapucaí desfilar pela Mangueira, em 1998.
Refuto o acaso, agradeço ao destino.
[1]
Diz minha mãe que meu pai estava com uma calça de linho e uma camisa florida
que fugiam à moda. Ele, em sua própria defesa, diz que o senso estético da
minha mãe é insensível a certas belezas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário