Há alguns meses atrás, quando fui assistir com alguns amigos o filme “The Fabelmans”, obra praticamente autobiográfica do Spielberg, fiz algumas anotações mentais de cenas que me marcaram para, depois, poder escrever um pouco sobre elas. Como se pode notar, não o fiz. Assuntos mais interessantes – pro meu crivo – surgiram, e eu acabei deixando o Spielberg de lado; sem me esquecer, entretanto, de muitas cenas e diálogos do filme, que metaforizavam interessantes insights do próprio Spielberg a respeito do seu processo criativo e do seu trabalho como diretor de cinema.
São duas as cenas, sendo mais
específico, que minha memória me remete constantemente, especialmente quando
estou lendo algo sobre arte
e a sua necessária relação com a linguagem. Na primeira – a qual é, não
coincidentemente, também a primeira cena do filme –, o jovem Fabelman (ou
Spielberg) se prepara para entrar em uma sala de cinema pela primeira vez. Com medo,
na porta de um dos cinemas de rua antigos de Nova Iorque, diz aos seus pais que
não entraria na sala e não assistiria a filme coisíssima alguma, a demonstrar
que o desconhecido o amedrontava. A cena
captou minha total atenção, pois me vi um pouco ali: medroso, sofro do
mesmo mal do personagem (uma completa aversão a experiências novas e
desconhecidas), motivo pelo qual digo que sou, na essência, um conservador.
O pai do Fabelmanzinho, então – representando
a necessária voz da experiência que um medroso como nós precisa ouvir – passa
a tranquilizar o filho a respeito da experiência cinematográfica. Um engenheiro
de computação extremamente metódico, ele começa a descrever o cinema para o menino
em termos absolutamente técnicos, afastando-o da realidade, de
modo que ficasse claro para o filho que tudo que estava prestes a assistir não
era real e não poderia machucá-lo. Com extrema sensibilidade, Spielberg coloca na boca de
seu pai uma descrição rigorosa e técnica de como era a reprodução
cinematográfica nas antigas salas de cinema: começa dizendo que o menino verá,
na verdade, apenas fotos sobrepostas, de modo que todo o movimento visto em
tela não passaria de uma ilusão; na sequência, cita o tamanho da lente da câmera usada para
fotografar os personagens fictícios; e chega a dizer, inclusive, o tamanho da tela que o menino verá a reprodução – num admirável esforço de colocar o filme que o filho iria assistir numa área tangível e conhecida para ele: fotos, dimensões e manipulação humana.
Na sequência, vemos uma criança, no
meio de uma sala cheia, maravilhada com o que via na tela: o pequeno Fabelman havia
sido captado pela linguagem artística cinematográfica.
A outra cena, por sua vez, apresenta
um obcecado jovem Fabelman, que, fissurado pelas possibilidades que o mundo do
cinema lhe abria, repetia em seu sótão uma filmagem danosa de acidente de trens
de brinquedo sem parar. Ele colocava a câmera que ganhou de presente de um
amigo de seus pais numa posição tal que ela filmasse o percurso dos trens até o choque entre si (e repetia esse processo), demonstrando, mesmo
naquele espaço limitado, o seu senso estético por meio do que tinha conseguido
captar da linguagem cinematográfica. Sua mãe – a quem, no decorrer do filme,
Spielberg atribui de forma indireta o seu “gene” artístico – observa aquela
cena por certo tempo sem entender muito bem qual o motivo pelo qual seu
filho insistia em filmar a colisão dos trens de brinquedo que tinha, até que arrisca em voz baixa sua conclusão: “ele só quer criar um mundo que possa controlar
completamente”. 
Esse insight que Spielberg
coloca na boca de sua mãe (é admirável como o Spielberg coloca as ideias que
têm sobre o cinema na boca de seus pais conforme a personalidade deles: a mãe,
pianista frustrada, é sensível; o pai, um gênio tecnológico, é objetivo) também
captou inteiramente minha atenção para a cena, fazendo com que aquele processo
anterior de quebra-quebra fixasse em minha cabeça. Ansioso que sou, refleti se, quando escrevo, quero, ao fim e ao cabo, apenas criar um universo completamente
controlável por mim; se seria essa minha única pretensão (por exemplo, esse
parágrafo deveria ter acabado em “mim”, mas o universo é meu, e sigo até aqui
por birra. Sou Spielberg?).[1]
 
Vivo, recentemente, uma crise criativa. Não consigo escrever nada (já levantei esse ponto, eu sei, na última vez que escrevi algo aqui no blog). Inspirado no filme, enfim, pensei em dizer – numa daquelas justificativas pós-fato que se lança mão só para ter algo bacana para falar – que é porque meu estado anímico não me leva à necessidade de criar um ambiente controlado. Estaria tudo bem, eu escreveria nessa realidade farsesca, e seria por isso que a criatividade não vinha visitar há tempos. Se seguisse por esse caminho – apesar de não haver qualquer compromisso de veracidade aqui – confesso que estaria escrevendo uma pinoquiosa mentira: além de eu não ser o Spielberg (sic, v. NR nº 1), talvez nunca tenha necessitado tanto, justamente, inventar um mundo controlado diante da barafunda de eventos que tenho no futuro próximo cujos resultados são incógnitas. Se fosse possível, aliás, faria como o pessoal lá das histórias em quadrinhos e inventaria multiversos – cada um para suportar uma parte da fragmentada ansiedade que hoje me corrói.
Essa divagação escancara que controlar as possibilidades não é meu motor. Se fosse, cada vez que sentasse para digitar me sentiria frustrado: ao contrário do Spielberg, que faz filmes e conta histórias, criar um ambiente controlado não é comigo. Afinal de contas, como se pode ver, eu não crio nada. Não há história para se desfrutar aqui.
O meu negócio é o conservadorismo caótico: viver as mesmas coisas sempre, mas sem ordem, ao acaso, e sem controle. Escrever é apenas uma das faces dessa eventual e constante repetição.
[1]
Não.
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