Quando, no dia 02.07.2023, domingo, entrei pelo portão de auto embarque do Santos Dummont por volta das 18h00 para iniciar meu trajeto à Charlotte, NC, tinha em mim o sentimento presunçoso de que nada de ruim poderia me acontecer. O que estava planejado para acontecer era simplesmente o que deveria acontecer. Não pelo simples fato de se tratar de um planejamento (os quais, na maioria das vezes, fracassam), mas pela certeza de que se tratava de um planejamento do destino.
Assim, entraria no meu avião no Rio às 18h45, desembarcaria
em São Paulo, no aeroporto de Guarulhos, às 19h50 após
breve ponte aérea; e, depois de inevitável soneca embalada pelo ruído das
turbinas do avião, acordaria nos Estados Unidos da América, no belo aeroporto John
F. Kennedy, onde conectaria para Charlotte. Era isso que deveria acontecer,
e eu tinha certeza de que aconteceria. O destino não distingue o dever-ser
do ser. Na verdade, o trabalho do destino é justamente fazer essa transição do dever-ser em ser. E eu não me lembrava de qualquer notícia de falha do destino nessa tarefa. 
Muito por conta desse sentimento que, às 18h45, na hora marcada para a decolagem do meu voo, eu estava confiante que tudo daria certo, apesar de ainda continuar no mesmo lugar que estava desde que entrei para a área de embarque: em frente ao portão designado para minha aeronave, olhando para os dizeres "SEM PREVISÃO DE PARTIDA" postos na tela acima do balcão. O avião ainda não estava e solo. No telão do aeroporto, apenas um aviso breve, ao lado da identificação do meu portão, dizendo que era esperado um “atraso mínimo de 30 minutos” para o vôo 1078 da GOL. Atraso mínimo.
Sentado de pernas cruzadas com a biografia do Philip Roth
entreaberta sobre elas, permanecia calmo. Raciocinava: “sairemos daqui no máximo às 19h30.
Chego lá 20h10. O meu voo para Nova Iorque é às 21h15, fora eventual e provável
atraso. É alta temporada. Tudo certo”. Ao meu lado, dois rapazes que pareciam ter minha idade,
com um sotaque paulista carregado, discutiam. Um imputava ao outro a culpa pela
escolha por Guarulhos como aeroporto para o retorno à casa. Realmente, pensei,
a escolha foi burra: se moram na capital, Congonhas faria mais sentido. Mas eles,
digo com sinceridade, não aparentavam ser rapazes com o costume fazer escolhas
inteligentes. Me diverti com a realidade alternativa dos dois, pensando que demorariam
mais para chegar em casa do que eu para entrar no avião para NY. O meu destino, pensava, era superior.
Às 19h30 o aviso de atraso de “no mínimo 30 minutos”permanecia no telão. A minha irritação não podia mais se esconder: comecei a questionar a lógica de um simples aviso de aeroporto. Indagava que tipo de previsão sobre atraso se ateria ao tempo mínimo; não faria qualquer sentido. Comecei a pensar como seria se a tragédia se prolongasse no tempo: “senhores, já temos sete horas de atraso. O tempo mínimo de espera será de 30 minutos”. Eu agradeceria a informação.
Às 20h00 a realidade era a mesma das 19h30. Que era a mesma das 19h00. O desespero começava a sondar meu estado anímico, e eu não conseguia crer no que estava acontecendo. Passei a ter certeza de que perderia o voo para Nova Iorque, mas ainda sob a perspectiva de que ao destino caberia um benevolente poder de escolha. Pensava: “já conheço o JFK. Será mais legal fazer escala em Atlanta, que eu não conheço, no voo das 22h00. O pessoal da Delta certamente irá me alocar”. E eu já me via em Atlanta, que era mais perto de Charlotte que Nova Iorque, curtindo aqueles infindáveis terminais num dos maiores aeroportos do mundo. A certeza de que vivia uma realidade imaculável era tão grande que, quando efetivamente embarquei e alcei voo, às 20h25, recebi mensagem de meus companheiros da Seleção informando que o embarque para Nova Iorque já estava praticamente encerrado. Dei de ombros e respondi: vou no voo para Atlanta, em breve estaremos juntos. Equívoco.
Cheguei na área terrestre de Guarulhos às 21h15, e meu código
QR para check-in não mais bastava para conectar para área de embarque. Tive de
sair do aeroporto para entrar novamente; e fui logo à GOL, companhia responsável
pela conexão Rio-São Paulo, ver o que poderia ser feito. Deu-se início, enfim,
à trajetória kafkiana que vivenciei.
Minha ansiedade é responsável por diversos problemas, mas um
ponto positivo é que me força à observação constante de tudo que ocorre à minha
volta. Durante a ponte Rio-São Paulo, eu percebi que diversas pessoas estavam
prestes a perder suas conexões. Todos comentavam entre si que iam para cantos
distintos dos Estados Unidos em voos que decolariam em breve. Então, assim que
pude, fui em disparada para o guichê da GOL, no Terminal 2 resolver minha
situação. O plano era me antecipar às filas e conseguir pegar o próximo avião indo
pros Estados Unidos. 
Conforme planejado, quando cheguei à GOL, na minha frente havia apenas meia dúzia de pessoas, todas sentadas nas primeiras fileiras do avião em que estava. A GOL, a seu turno, parecia diligente em resolver os problemas: colocou uma funcionária para falar com os enfileirados, perguntando qual seria o destino final (sic). Ao chegar em mim, respondi que iria para Charlotte, em trajeto comprado com a Delta. Não me esqueço de sua reação ao ouvir a palavra “Delta” sair da minha boca. Foi como se alguém lhe dissesse que, apesar de não ter conseguido alcançar a média necessária, não seria reprovada na escola. Em seguida, ela sentenciou o meu verdadeiro destino: “senhor, se você comprou seu bilhete com a Delta, é com eles que deve resolver”.
E, sem questionar, lá fui
eu. Do Terminal 2 para o 3 de Guarulhos, num trote de uns 7 minutos, com uma
mochila enorme nas costas e a bolsa com meu notebook quicando como uma bola. É Kafka, pensei: estou no
lugar errado. Mas não sou Joseph K, pois estou a caminho do lugar certo!
Ao chegar no Terminal Internacional, viro os olhos num sentido
nike até o guichê da Delta e o encontro vazio. Após conversar com funcionários
da LATAM, explicando minha situação, descubro que há um escritório da
companhia americana; descubro que ele está aceso; descubro que a luz indica haver trabalhadores por lá; descubro que esses
trabalhadores poderiam me ajudar; descubro que há um elevador para me levar; descubro que, enfim, tudo ficaria bem; meu destino estava intacto.
Obstinado, subi o elevador e bati na porta como quem tem medo
de acordar alguém mas sabe que precisa. Fui atendido. Eu suava como se
houvesse transferido todo o campeonato que jogaria em Charlotte, em três dias,
para trinta minutos no aeroporto. Atendido, ameacei chorar, dizendo que não ir
para os Estados Unidos naquele dia poria toda a utilidade da minha viagem em
xeque. Complacentes, os funcionários da
Delta disseram que nada podiam fazer por mim. Numa aula de Responsabilidade
Civil das Ruas, informaram que, como o atraso era da GOL, era a GOL quem
deveria me realocar para o próximo voo que existisse para os Estados
Unidos. Materializando a pena que sentiram de mim, emitiram
bilhetes para o traslado para Atlanta do dia seguinte, às 22h da noite. Lugar
errado, sim, eu era Jospeh K.
A ficha começava a cair: destino, no final das contas, é o que
você acha conveniente estar no seu futuro. E eu me deparava com uma sucessão de
inconvenientes que pareciam incontornáveis.
Repeti o trajeto de maratona de volta à GOL e, como ali eu já
havia sofrido a metamorfose para Joseph K., a desgraça foi
imediata: a fila tinha mais de 45 pessoas, fazendo curvas no Terminal 2 de
Guarulhos. Pessoas com conexões perdidas para Nova Iorque, Miami, Orlando e
Chicago. Todas na minha frente, graças à funcionária que fez a proeza de me mandar para a Delta como se fosse a puta que pariu.
Na minha segunda temporada pelo guichê da GOL, procurei
a funcionária '1' por todos os cantos, acreditando sê-la a chave para minha libertação.
Quanto mais o tempo passava, mais minha mente criava situações absurdas: imaginava
a funcionária 1 me pedindo perdão, procedendo com a emissão de um
bilhete de primeira classe para Nova Iorque; imaginava-a fazendo tudo isso que
descrevi e me oferecendo cinco mil reais de crédito em passagens GOL até o fim
desse ano. Imaginava. Era tudo o que podia fazer. A imaginação é o tronco do destino.
E ambos são braços da mentira. 
Esperei por três horas na fila até ser atendido, pela funcionária
2, por volta das 23h40. Sem mais voos para os Estados Unidos no dia (isso
eu já sabia – estava há horas monitorando tudo no flight radar, site que
uso para acompanhar viagens internacionais do Fluminense), me restava a chance
de pegar algum voejo de madrugada da COPA Airlines. Comuniquei essa ideia à funcionária
2 que disse que iria “lá para dentro para ver a disponibilidade”. Nunca
imaginei que, em aeroportos internacionais, só fosse possível acessar informações
de itinerários de viagem em salas privadas. 
Exatos 40 minutos depois, a funcionária 2 retorna com uma
pergunta que eu escutei “o senhor tem tatuagens nas nádegas?”; mas, na verdade,
ela questionou: “você tem vacina para a febre amarela?”. Reagi à efetiva pergunta
como reagiria à imaginada porque não via a pertinência de ambos os requisitos
para entrar nos Estados Unidos; mas, em seguida, raciocinei que devia se tratar
de exigência de algum país da América Central. Antes da racionalização
internalizada, verbalizei: “que?”. Ela respondeu o que pensei: “para entrar no
Panamá é preciso; tem um voo da COPA de madrugada, mas passa por lá”. Disse que
não tinha, e ela retornou para o casulo da Matrix na qual todos os traslados aéreos
são listados num prompter tecnológico em forma de torre. 
No seu derradeiro caminhar em minha direção (o caminhar que,
vos digo, seguia o ritmo de uma valsa se valsas fossem feitas para prédios
dançarem), a funcionária 2 me informou que eu poderia ir viajar às 09h00 do dia
seguinte, para Atlanta. Voo diurno, pensei. Horrível. Teria que comprar wi-fi.
Mas, se chegasse à noite em Charlotte, poderia valer a pena. Perguntei a hora
de chegada: “11h05 de terça-feira, senhor”.  O mesmo horário daquele voo que os funcionários da Delta me alocaram por pena. Seria a consecução de toda a atmosfera Kafkiana:
um voo que, em comparação com outro, não saia do lugar. Que destino! Resisti a
dar continuidade à narrativa e solicitei: “me coloca no voo noturno dos
bilhetes que te entreguei, então, por favor”. O relógio marcava 00h15. Lugar errado de novo, Joseph K.
Feito isso, foram me dados vouchers para táxi de ida e volta
do hotel e fui colocado em um lugar perto do aeroporto de Guarulhos, com
direito às refeições que teria de fazer até ir embora. Teria, ao menos, uma
noite de sono razoável, numa cama e não numa poltrona, pensei, de modo
que poderia descansar. Cheguei ao hotel, fiz check-in, comi rapidamente os
restos de comida que estavam no buffet de jantar e subi. Amputei o tênis
dos meus pés, com raiva, e me deitei. Acabou, pensei. Não estou mais num livro
de Kafka; posso descansar.
Poucos segundos depois, escuto batidas fortes na minha
porta, que eram cartão de visita de um visitante que não tinha qualquer medo de acordar quem estava no quarto. Levantei um pouco assustado e entreabri a porta. Vi metade do rosto
do segurança que me recebeu quando fiz check-in. Reconhecendo-o, abri a porta por
completo e lhe ofereci um “boa-noite!”, que ficou sem resposta. Ele se
limitou a me perguntar: 
“o senhor esqueceu alguma coisa lá
embaixo?”.
Sou Joseph K., pensei, então devo ter deixado por lá meu passaporte ou
carteira. Confiro meus bolsos da calça e constato que não. Está tudo ali.
Respondo: 
“não esqueci nada, não”.
Como quem desafia as lentes pelas quais o outro enxerga o
mundo, rebate: 
“tem certeza?”. 
Inutilmente repito a conferência para constatar que está tudo
ali: 
“tenho sim, tudo comigo”.
Como num golpe de boxe, o segurança estende a mão para mim com
a caixa do meu fone de ouvido: 
“isso aqui, por um acaso, não é seu?”.
Sorrio, pois penso: que camarada benevolente. Poderia ter ligado
para o quarto, ou me entregue amanhã. Ou, até mesmo, ficado com o fone. Não
iria notar, tinha sido tudo tão caótico. Mas ele trouxe até aqui. Merece
uma gorjeta! 
Estendo a mão de volta para ele, para capturar a caixa. Ato
contínuo, o segurança retrai a mão que segurava o fone; de modo que, aquela
cena observada obliquamente, parecia que minha mão, esticada para buscar a
caixa, empurrava a dele pra trás, como se eu estivesse afastando-a de mim. 
Com sua mão distante da minha, segurando o fone, responde: 
“mas você disse que não perdeu nada!”.
Nesse dia, era mais fácil dizer o que eu não tinha perdido. Recuperei meu fone sob aviso de que ele poderia ser confiscado no dia seguinte, encostei a cabeça no travesseiro e dormi.
No dia seguinte, ao acordar, a primeira coisa que fiz foi, assustado, tatear meu cabelo. Constatando que ainda tinha cabelo e não antenas, respirei aliviado. Tinha acabado em "O Processo". Não viveria a metamorfose.
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