Chego ao escritório, na esquina da rua Jardim Botânico com a General Garzon e, ao encostar no disjuntor e permanecer no breu, intuo que as luzes estão com mau contato. Não me dou facilmente por vencido, aperto e desperto os botões, troco
a ordem do aperto, fico um tempo sem apertar para tentar ver se, no susto, vai
– e nada. Tenho dificuldade em entender qualquer esforço não retribuído, mas aceito trabalhar no escuro. A bem da verdade, não está lá tão escuro assim: o dia está claro, e a
luz do sol consegue ultrapassar o insufilme da janela como se não estivesse lá.
Sigo meu percurso: passo a antessala, toda cinza, entro no espaço principal, cujo miolo é marcado por uma quadrada e larga mesa de madeira, e chego à cadeira que atribuí, pela prática, a mim. À minha esquerda a paisagem, à minha direita a parede em que se encontra a porta para antessala. Abro o meu computador, faço afazeres mecânicos que dão o pontapé no dia de trabalho, numa espécie de café burocrático, e compreendo-me na sala sem luz. Novos detalhes aparecem: as palmeiras do jardim botânico parecem mais verdes, e a cor das plantas penetra o escritório, dando-lhe, na medida do possível, um ar florestal agradável. Para cada objeto há uma luz ideal. Findo os afazeres, decido tentar de novo e vou ao disjuntor: o bem-estar do sistema elétrico preocupa-me.
Encosto o polegar no botão que ligaria a lâmpada maior, retangular, que fica acima da mesa de centro, e percebo que insisti demais: de pronto, uma fumaça cinza começa a sair da impressora, que fica ao lado da janela, e sinto-me como alguém que aperta a campainha de um apartamento e se surpreende ao ver que a porta que se abre é a do vizinho. Me assusto e, apressado, vou à impressora, portando-me tal qual um médico inexperiente que lida com um paciente inesperado. Com medo do choque, retiro-a da tomada como se apertasse um gatilho pela primeira vez, e vejo o cheiro da fumaça densa subir ao meu nariz. O odor é invasivo, um enxofre carbonizado, e automaticamente levo as mãos ao rosto para tampar as narinas. Educadamente, abro a janela para que a fumaça encontre o caminho da rua. É verão, e a janela aberta traz consigo o ônus do calor. Obcecado pela tentaiva de equilíbrio, pego o controle do ar, não sem antes deixar caí-lo no chão, e diminuo o termostato.
Já sentado novamente, tenho anseios frustrados de paciência, pois, mesmo com a janela aberta, o cheiro queimado não sai. Parece haver um acordo entre o ar de fora que entrou primeiro na sala e o ar gelado que circula a partir do teto: protecionistas, formam um muro invisível contra invasores externos, tratando-os como imigrantes indesejados. Por pouco tempo considero a hipótese de desligar o ar-condicionado, mas rejeito-a antes mesmo de chegar ao lugar do cérebro reservado à conclusão das ideias: suar no vapor de enxofre seria como fazer sauna no inferno.
Finalmente, sinto a fumaça indo embora, aos poucos, para o lado de fora. Vale a pena ser paciente, concluo, as coisas naturalmente se ajeitam, que mal fará não ter impressora por uns dias? Levanto-me, busco a garrafa d'água na geladeira, e fico pronto para dar sequência ao labor. Depois de poucos minutos de não-trabalho, por vício, giro meu pescoço para a esquerda para admirar a paisagem por trás da janela entreaberta. Vejo o Jardim Botãnico, vertical e verde; e, ao longe, vejo o pão de açucar, uma protuberância sólida que vem do chão que me faz retomar meu relapso senso de propósito.
Dessa vez, entretanto, reparo haver certa diferença no lado de fora: em cima da árvore que fica colada ao vidro do prédio, há um gavião. Majestoso, o leão alado olha-me com certo desdém e curiosidade, quebrando a cabeça levemente para o lado. Eu o imito, buscando dizer, incoscientemente, que também não faço a menor ideia do motivo de sua presença, ainda mais considerando o odor repelente que vem daqui. Em reflexão imediata, penso que os animais são mesmo todos burros, bichos irracionais que não tem muita ideia do que fazem na maioria do tempo.
Pouco me importa a natureza do gavião, mas sim o fato de que, na prática, sua presença me coloca diante de um dilema vulnerável: devo ir à janela para fechá-la, assumindo o risco de assustar a ave e, consequentemente, receber um ataque evasivo; ou devo assumir meu status covarde, me trancar na antessala com meu computador e trabalhar de lá até que a inevitável ação do enxofre sobre o tempo o façam desistir do lugar que escolheu repousar?
Devaneios vazios, como a grande maioria deles são, pois antes mesmo do encerramento da elocubração reparo que o gavião, espertamente, deu-se a voar. Mudo meu pensamento: quem não sabe o que faz sou eu, humano, que mesmo diante de um odor mortal continuo a fazer o que me cabe: obdecer e trabalhar, trabalhar e obedecer, um binômio insperável e compulsório. Como ele, queria cair fora.
O animal, inteligente e independente, não perde tempo: rapidamente escapa das situações que não lhe agradam. Vive onde cabe, anda com seus semelhantes, se esforça conforme suas necessidades e suas ambições parecem imutáveis. Quem sabe a capacidade do humano de insistir no desagradável, até chegar na penosa adaptação, seja a principal razão de nossa pretensa evolução.
Enfim, mesmo diante de tanta turbulência, cá estou: sozinho, sem impressora, sem parceiros voadores, preso a um cheiro enjoativo e constante, esperando alguma coisa acontecer. Quem sabe uma batida de carro na rua jardim botânico, ou uma discussão na sala abaixo, algo caótico que me faça retomar a realidade. Enquanto isso não ocorre, sinto-me despido de propósito, como o alcóolatra no tempo eterno que dura o intervalo entre um gole e outro. Ou, com mais pertencimento, sinto-me como a criança que, na sala de espera do pediatra, encara as revistas enfileiradas e antigas mas não as lê — pois servem apenas para ocupar o tempo das mães.
10 minutos
depois...
Todo o sistema elétrico da sala se queimou. Bastou o gavião ir embora para que, minutos depois, a impressora contaminasse a cafeteira, e ambos passarem a exalar, em sincronia, o cheiro de enxofre para toda a sala. A geladeira as seguiu e tudo mais se queimou. Me impressiono como as coisas são coletivistas; não pode uma só dar problema, tem que ser tudo de uma vez. Certo de que se trata de um problema elétrico, interfono para o administrador do prédio, que me atende num tom de voz que, traduzido, representa a distância do binômio obediência/trabalho. Assim, por precuação, cientifico-me de que deve ter ocorrido algum curto-circuito, coisa corriqueira, o melhor seria ir embora da sala, antes retirando o que estivesse nas tomadas e desligando os disjuntores.
Obediente, sigo as instruções. Afinal, quaisquer que sejam as ordens e independente do seu emissor, eu as acato: seja a
chefe, o administrador do prédio, o Papa Francisco ou um mendigo que pede dinheiro: não há hierarquia, o que me mandam
estou fazendo. O universo da insubordinção sempre me pareceu dotado de estranha insensibilidade. Desligo tudo com capricho, cuidado e o compromisso de despir das tomadas todas as hastes metálicas que ora as ocupavam. 
Cumprida a missão, não posso deixar de pensar na gênese de tudo: o momento em que tirei da tomada a impressora que expelia fumaça. Se houve, de fato, um curto-circuito, beirei o fim. Poderia ter levado um choque, o que me queimaria instantaneamente.
Morreria, é claro, me tornando um dos dois maiores defuntos autores da história, atrás apenas de Braz Cubas e na frente de, possivelmente, mais ninguém. Quem sabe, por outro lado, eu não acabaria retornando a esse plano na figura de um gavião.
Seria, enfim, livre e capaz de desfrutar do prazer de observar, num dia qualquer, um rapaz confuso, que, mesmo quase tendo colocado fogo no próprio escritório, teria a audácia de me olhar com aquele inconfundível ar de superioridade humana.
Audácia enganosa: mal saberia ele que eu, da janela, não passaria de um preocupado irmão mais velho.
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