"Tantas Palavras" é uma música do Chico Buarque que foi a primeira obra de arte que vi tratar de um tema que eu não pensava existir até sentir na pele: a subtração de palavras de um vocabulário ocasionado pelo fim de um relacionamento. Em uma das estrofes, Chico diz que são "tantas palavras que eu conhecia, e já não falo mais, jamais"; em complemento, adiciona que são tantas "palavras que ela adorava [e] saíram de cartaz".
Já li por aí que a língua é a “capitalização simbólica da produção intelectual de um povo”, e isso parece fazer certo sentido. As palavras seriam subprodutos simbólicos dessa produção intelectual, exortando significados no mundo conforme são pronunciadas, a depender do canal comunicativo, do emissor e do receptor: isto é, a objetividade das palavras e dos seus significados variam conforme os sujeitos que estão a falar e ouvir. Essa variação, que dá às palavras acepções diversas e, muitas vezes, distintas de seus significados comuns, é das coisas mais bonitas que surgem dos relacionamentos.
Relacionamentos são propícios para a criação de significados autênticos por meio das palavras: não é incomum constatarmos que tribos de amigos têm o vocabulário extremamente semelhante, assim como também é normal um casal que compartilha o uso de vocábulos em significados que não o usual; muitas vezes até partilham o tom de voz para dizer certas palavras. No segundo caso, é razoável dizer que o fim da relação (até porque é raro amizades “acabarem” num sentido irreversível) ocasionam a extirpação súbita de parte da capacidade de expressão daquelas pessoas, gerando um vácuo que é difícil explicar, por ser quase um bis in idem: perde-se a capacidade de se dizer o que se normalmente diz e a própria capacidade de verbalizar porque essa perda é desagradável.
Palavras são maleáveis e facilmente ganham sentido próprio. Foi por meio da criatividade que muitas expressões populares ganharam sentido: "deu zebra", por exemplo, é expressão nichada do jogo do bicho, que ganhou o imaginário popular depois que seu sentido se expandiu para situações semelhantes, significando a surpresa com um resultado inesperado. Imagino a primeira pessoa que levantou um "deu zebra" após o resultado do jogo, e imagino, com mais afinco, a reação da primeira pessoa que entendeu o que se queria dizer ali. É coisa de grupo, de quem partilha experiências de forma tão profunda que precisa verbalizar algo próprio para se entender e, também, se identificar.
O amor também comunga dessa ideia. Apesar de não se tratar de um "grupo", a lógica é a mesma: tem-se duas pessoas que dividem as experiências com constância, adubando terreno para essa ampliação criativa das palavras. A diferença, no amor, é que a singela criação de significados peculiares se esgota num universo de dois, o que acaba por aproximá-los ainda mais. Nesse universo de dois, quanto mais se brinca com as palavras, mais os outros começam a parecer estrangeiros, incapazes de entender o que se quer dizer. Isolam-se aqueles que entendem e se fazem entender.
Penso na expressão “por exemplo”, por exemplo, que, num relacionamento que tive, foi decapitada do seu significado ordinário — que é introduzir alguma situação paradigmática a respeito do que se fala — pois minha companheira a pronunciava num tom suave só para chamar minha atenção e sugerir, sem impor, o programa que ela gostaria de fazer em determinado dia: “nós podíamos fazer algo como, pôrexêmplu, ir ao cinema?". Nessa frase, nada precisa ser introduzido: o cinema viria na sequência, e era só o cinema que interessa para ela. Mas, o “por exemplo”, pronunciado como uma súplica, era usado a todo momento que o objetivo era captar minha atenção e sugerir o programa de sua preferência, sem fazer parecer, para mim, que se tratava de qualquer imposição, ao mesmo que se fazia claro qual era o seu desejo.
Como tende a acontecer com tudo, esse relacionamento acabou, e eu percebi a grande dor que é se ver subtraído de parte do vocabulário de um dia pro outro. É como se páginas de um dicionário fossem roubadas, não sendo mais possível dizer certas palavras. Natural que o sentido figurado, cuja lógica se inseria naquele mundo que não mais existe, se perca. O duro é reparar que até mesmo o uso dessas expressões em seus sentidos ordinários nos traz uma sensação de pouca autenticidade. Fico com a sensação de que o que as palavras gostam mesmo é de serem instrumentalizadas pelo amor, e vivem à espera desses momentos. "Por exemplo", por exemplo, é expressão que não vê muita graça quando a usam para "introduzir alguma situação paradigmática a respeito do que se fala", mas sinto que adorava fazer parte de uma sugestão charmosa de programa para um sábado à noite. O ser é mais adorável que o dever-ser, e as palavras também anseiam por existir.
Para fechar essa presunçosa digressão, penso no “Romance das Palavras Aéreas”, da Cecília Meirelles, que me impactou da primeira vez que o li, mais novo. A Cecília fala que as palavras tem "estranha potência", são de vento, vão ao vento, e "no vento que não retorna[m] (...) tudo se forma e se transforma". Achei a descrição muito bonita e justa: é consciente pois assume a fragilidade e a efemeridade das palavras; mas também romântica, pois fornece às palavras o seu justo poder de tudo formar e transformar.
É justamente nessa banalidade, nessa coisa tão simples que é falar, que se esconde a magia das palavras. Assim que enxergo aquelas que perdi: ficaram no vento, por um tempo formaram e transformaram, e, em dado momento, adquiriram vida própria, passando a reverberar por aí. Ouvi-las, hoje, é como passar por uma rua em que morei: não importa como tenha me sentido quando as disse ou quando as perdi, só posso sentir saudades.
Saudades: a única palavra que vive em universos habitados por uma pessoa só.
Por novas palavras.
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