Meu pai



Hoje meu pai faz 62 anos. 

Falar dele é sempre um lugar comum danado pra mim: caio na pieguice de me referir ao amor -- sempre ele, o amor -- e sinto que estou escrevendo um troço fabricado, um moto contínuo sem qualquer graça que fica dando voltas e voltas, terminando sempre no bordão do amor. 

Mas a verdade é que seria um subterfúgio pouco honesto fugir do amor pra falar do meu pai. O certo é tratar da nossa relação da forma que ela é, seriamente sui generis, cheia de peculiaridades, mas que tem como denominador comum um amor recíproco e facilmente percebido por nós dois.

Quando criança, é verdade, eu queria sentir mais amor por parte do meu pai (eu não sei, mas acredito que a recíproca aqui também seja verdadeira). Completamente devoto ao futebol, uma das grandes questões para mim era não compreender um pai que não ligasse para aquilo que era minha razão de viver. Meu pai não gostava de futebol, não ligava que eu jogasse futebol e -- e aí está o que mais me doía -- não parecia se importar com o fato de eu ter um talento exímio pro negócio. Enquanto todas as outras pessoas gravitavam ao meu redor justamente por isso. Mas meu pai, não.

Ao mesmo tempo, quando conversava com meus colegas, vislumbrava que meu pai fazia coisas por mim que os pais dos meus amigos não faziam por eles: ele me levava e buscava na escola, diariamente, sem se atrasar; cozinhava meu almoço e janta, perguntando, sempre, o que eu gostaria; e me levava no futebol, por mais que me parecesse que ele não fazia ideia do que estava se passando, nem quisesse saber (depois fui descobrir que não era nada pessoal com o futebol: era coisa de qualquer esporte...).

Eu cresci, portanto,  desenvolvendo sentimentos conflitantes em relação a meu pai. De um lado, via um homem mais velho que em nada se parecia com os pais dos meus amigos, que eu sentia tão presentes e vívidos, numa análise de superfície. Meu pai pouco saía, ficava em casa, não interagia muito com os amigos que eu levava em casa, não gostava de esportes e ouvia, a todo tempo, aquele troço que eu chamava de "música sem voz". 

Mas isso não fez com que eu criasse uma aversão a ele, ou qualquer sentimento similar. Apesar de tudo, eu conseguia enxergar que existia um lado positivo no fato do meu pai também não se parecer em nada com o pai dos meus amigos. Enquanto o pessoal costumava relatar chegadas tardias dos pais e pouco contato diário, eu tinha acesso ao meu a todo e qualquer momento. O meu pai era meu, era essa a sensação que eu tinha, por mais que não fosse exatamente como eu queria, eu tinha ele só pra mim. 

É inegável, entretanto, que a imagem infantil que tive do meu pai é de uma certa distância. Cheguei a dizer para um professor, certa vez, que eu e ele nada tínhamos em comum. Como eu me enganava. As crianças certamente possuem uma percepção emocional enorme, muitas vezes maior do que lhes é dado crédito, mas têm dificuldade de entender algumas formas de expressão de afeto e identidade. É difícil para uma criança entender que um professor, por exemplo, se importa com o aprendizado dela quando está sendo duro; ou que um pai calado, verdadeiramente recluso, está a demonstrar um amor incondicional apenas por se fazer estar perto a todo e qualquer momento.

Enfim, eu cresci, e entendi a história do meu pai, para depois entender porque ele é como ele é. Não foi um ato contínuo, mas um ato continuado, que levou certas sessões de conversa. Quando ele pela primeira vez me disse que, em uma casa com dez irmãos, escolhia se trancar para estudar música clássica (sendo esse o motivo da sua mudança de Caxias do Sul para o Rio, aos 23 anos -- era barulho demais...), as coisas começaram a fazer sentido. Esse é meu pai: uma figura reclusa, com senso estético afiadíssimo e um inegável apreço pelo silêncio (ou melhor, por ambientes com barulho na medida). 

Passei a entender o quão difícil devia ser para o meu pai fazer certas concessões para me acompanhar. Imaginei o quanto o incomodava ficar vendo crianças correrem atrás da bola enquanto outros pais, frenéticos, gritavam como se o filho estivesse a disputar uma final de Copa do Mundo numa segunda à tarde qualquer. Lembrei com carinho da vez que me levou ao Maracanã, em 2004, na última rodada do Campeonato Brasileiro daquele ano, jogo contra o Palmeiras, no qual entrei em campo com o Rodrigo Tiuí, ex-jogador do Fluminense, e só pude imaginar o quanto ele me amava, pois aquela fora a primeira e última vez que ele pisou no Maracanã.

Conforme a transição da adolescência para a fase adulta foi ocorrendo (a partir dos 16 anos), fui me aproximando cada vez mais do meu pai, nisso que chamei de ato continuado. Ele me mostrava músicas que interpretou ao violão -- e outras que gostaria de ter interpretado --, e eu, como um dos alunos de violão que ele outrora teve, imergia (sem tocar no ou instrumento, diga-se) nas canções, ouvindo-as sem parar. Foi pela música, e digo isso com muita certeza, que primeiro nos aproximamos.

Depois, veio nossa outra forma de se grudar: as minhas dores de cotovelo. Como sou extremamente sensível, era fácil de se notar quando eu estava triste, ainda mais durante a adolescência: eu era um livro aberto, desesperado para dizer as pessoas quem eu era e o que eu estava sentindo. Meu pai, que todo dia me via perambular pela casa, sabia o status do meu humor só pelo meu semblante. Quando eu estava visivelmente pra baixo, ele puxava conversa e falava um pouco da vida dele. Em uma história que jamais esqueci, ele me contou do dia em que foi expulso da casa da namorada na tarde da véspera de Natal. Na época, fiz uma gradação de sofrimentos e pensei que, se está tudo bem com meu pai hoje, mesmo depois disso, eu não teria muito motivo para me queixar.

Ali, descobri uma outra faceta do meu pai, que foi mais uma etapa do ato continuado da nossa aproximação: ele também era um tolo apaixonado, e um tolo apaixonado que poderia me ajudar a entender meus sentimentos e, quando demais, amenizá-los. Dentre ele e minha mãe, a quem eu era mais apegado na infância, o escolhi para falar sobre as mazelas do meu coração. E foi uma escolha acertada, em cheio. Eu, um fatalista que vivia com os ânimos a flor da pele, muito aprendi com meu pai, um homem cujo tempo fez com o que racional prevalecesse sempre, numa constância admirável, que equilibrou bem comigo.

Com o tempo, esses eventos iam se repetindo (músicas aqui, choros acolá), e eu passei a de fato conhecer meu pai, e admirá-lo profundamente. No começo foi esquisito, pois pareceu que tudo ficou em condição suspensiva por dezoito anos, e eu fiquei um pouco frustrado: queria ter conhecido ele antes. Mas estou certo de que foi como deveria ser, pois não poderia compreender meu pai, suas nuances e, especialmente, seus motivos até eu mesmo passar a ter minhas próprias nuances e camadas de personalidade.

Hoje em dia, fazemos um bocado de coisas juntos, que descobrimos ser mais legais em companhia: churrascos na varanda, academia, leitura de artigos de jornal e até falamos sobre futebol, olhe lá, quando ele se aventura a puxar conversa comigo. 

A verdade é que a paixão que sinto por meu pai é a mais pura que já senti por qualquer pessoa. É difícil explicar o porquê, mas acho que tem a ver com o fato de eu nunca ter notado ele fazer mal a mim ou a ninguém. Tenho certeza que é isso: a minha paixão ingênua pelo meu pai está ligada ao fato de que ele é um homem bom, e toda vez que sinto algum sinal de fragilidade nele meus olhos ficam aguados, numa reação que eu não consigo controlar.

Eu desejo que meu pai ainda faça alguns aniversários por aqui. Desde pequeno, cresci ouvindo as pessoas falando sobre o potencial nocivo do cigarro (ele é fumante) e do excesso de peso (sim, também...) e isso acabou por me preparar inconscientemente para a possibilidade (friso, a possibilidade) de eu perder meu pai cedo. Digo, eu sempre soube que a existência dele seria finita; nunca fui como essas crianças que viam nos pais uma força eterna. Hoje em dia, eu vejo que não me preparei é para nada: não quero pensar, tão cedo, numa vida sem a presença do meu pai e suas diversas demonstrações de afeto que eu, com o tempo, compreendi, aprendi a receber, e, hoje, não sei mais viver sem. 

Parabéns, pai.

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