O desenho do meu futuro

 


O DESENHO DO MEU FUTURO 


Eu desenhara meu futuro com lápis colorido. Era lindo, como um desenho de criança: fiz nuvens redondas que jamais desaguariam e circulei um belíssimo sol amarelo - tudo deveria começar pelo céu. A casa era quadrada, com duas janelas, e bem ajardinada (eu chamei o jardim de Palco); e você estava ao meu lado, com um vestido vermelho simples, bem pontiagudo e triangular (o vestido precisava ser simples, já que eu desenho mal demais).


Foi um orgulho enorme quando terminei o desenho do meu futuro. As cores eram tão latentes. As nuvens eram brancas e redondas. O céu era de um azul imaculado e tinha um sol que era só luz. Contemplei o papel algumas vezes e guardei-o na gaveta da minha mesa de cabeceira, cuidadosa e satisfeitamente, e lá deixei. Estava pronto e não haveria alteração: eu tinha feito o meio futuro.


Na minha mesa de cabeceira, anoto aqui, não guardo apenas o desenho que fiz. Lá estoco moedas, documentos velhos, restos de recibos e mais outras inutilidades esquecidas (digo estocar para fornecer um certo propósito a um bando de bugigangas que para nada servem). Certo dia, abri a gaveta para caçar moedas e esbarrei com meus dedos, grossos e sem licença, no desenho do meu futuro. Quase amassei o papel.  


Quando peguei o papel e o subi aos meus olhos, confesso que me assustei: as nuvens, densamente cinzas, haviam tomado conta do céu. O sol, outrora pura luz, havia sumido. A casa achatou-se; e o gramado do jardim, que chamei de palco, tão alto que a resma esbarrava no bordado do seu triangular vestido vermelho, que começava a sumir de forma sorrateira, meio que torcendo para que eu não percebesse. 


Tentando entender o que poderia ter acontecido, olhei para a parte de cima da mesinha e vi que alguma água que eu bebi escorreu para dentro da gaveta. Vi a madeira enegrecida, aquela marca circular de fundo de copo, e conclui que não havia nada de espetacular naquele desaparecimento todo. Estamos falando do mundo real, ora, e minha irresponsabilidade derramou água naquele desenho. Sabendo estar tudo certo, guardei o desenho, inalterado. Sol, poucas nuvens, e o vestido vermelho no jardim. 




Num dia qualquer, abri a gaveta para pegar moedas e esbarrei naquela folha de papel. Já a havia esquecido, confesso. Quando olhei o desenho, entretanto, me assustei mais do que da outra vez. Peguei no papel e, ato contínuo, o vestido vermelho apagou. Sem vestido, o sol também se foi. E aí as nuvens, que já eram maioria, também decidiram sumir. A casa desmoronou. E eu tinha em mãos uma folha imaculada, em branco. Não haveria mais amanhã.


Irresignado, conclui que precisava redesenhar meu futuro, por mais pueril que essa ideia possa parecer. 


Fui em busca dos lápis. Abri uma outra gaveta da minha mesa de cabeceira (lá guardava alguns antigos Faber Castell, coloridos e variados, da época de colégio) e fui trabalhar.


Puxei o primeiro, vermelho, ansioso como nunca para desenhar aquele pontiagudo e triangular vestido. Mas, ansioso, atritei o lápis contra a folha com tanta vontade que a ponta quebrou. Confirmava-se: não haveria mais vestido vermelho no meu futuro. Sem apontador e sem outro lápis vermelho, a vestimenta haveria de ser outra.


Obstinado, pensei em dar uma cor mais vívida ao vestido (afinal, o que importava era ter um vestido: não ligava para a cor). Peguei um roxo mais claro, sabendo ser quase um milagre eu ter uma cor fora do trio RGB no meu arsenal, e, mais uma vez, tentei colorir o vestido -- dessa vez com cuidado.


Antes mesmo de tentar, percebi que o lápis estava quebrado. Deixei de lado e pensei que, como no primeiro desenho, tudo começaria por cima: precisava de um sol radiante (era a forma de fazer o vestido, de qualquer cor que fosse, brilhar mais) e por ele devia começar.


Puxei o amarelo para formar um círculo no topo da folha, e reparei que esse lápis também estava sem ponta. Droga de lápis de colégio, pensei, todos velhos. Me indaguei como poderia me surpreender com isso: nunca fui cuidadoso. Se fosse, não precisaria estar desenhando meu futuro pela segunda vez…


Peguei um lápis de cada vez, e a constatação foi a mesma, repetidamente: meus lápis, todos, estavam sem ponta.  E a folha continuava em branco e sem cor.


***


Estou, agora, em frente ao elevador.


Escrevo apressado no meu bloco de notas, porque preciso ir à papelaria. 


Ainda não sei do que preciso: se de lápis novos, numa bela coleção da Faber; ou se de um novo apontador.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Na Praia

  Na Praia Chego ao Sul da França, em Nice, e logo me assusto: o caminho para o mar é feito de pedras, pedras grandes, pedras esteticament...