É PARA OUVIR
Engraçado como, com o tempo, eu fiquei mais afeito à músicas instrumentais. Antigamente, meu fetiche musical era ouvir o Chico Buarque desvendar meus sentimentos, e eu ficava lá, ouvindo o lirismo dele ao som de algum arranjo que pouco me importava.
Hoje, passei a me importar muito mais com o arranjo musical. Fico ouvindo João Gilberto só atento ao violão, e, quando escuto Samba de Verão, gosto das versões que tenham Marcos Valle ao piano.
Mais que ouvir instrumentos que "falam", acho que minha vontade é ouvir os ritmos que traduzem um sentimento. Gosto de descobri-los. E, egoísticamente, atribuir o que quiser a eles.
À Radames Y Pele, do Tom, talvez minha música instrumental predileta, atribuí a posição de ritmo do meu cotidiano nos idos de 2019. Sentia-a cansativa e intencional; como eu vivia naquela época.
Arranjos e letras; letras e arranjos: no final das contas, são formas diferentes de se dizer as mesmas coisas.
O MEU EU DE ONTEM
Abri meu armário do quarto e dei um encontrão com meu eu de ontem. Quantos resquícios.
Quase que um almoxarifado infungível. Tudo tão propriamente meu que não dá para enganar.
Panfletos do PSOL, de quando acreditava na revolução como resposta a esse mundo tão injusto; provas gabaritadas na PUC, de quando investia em “ser o melhor” - não importando o quê; textos bem lidos de filosofia do direito, sociologia política, teoria do Estado. Eram esses, então, os assuntos que em identificavam perante os outros. Tudo tão meu e, hoje, tão distante de mim. Me desmembrei enquanto me descobria.
Lembro de sentar, sozinho, no pilotis da PUC e ler meus cadernos, meus livros, sempre ouvindo música; virar o rosto com orgulho sempre que algum conhecido tentava fazer contato visual. Não queria conversar. E esse orgulho me era prazeroso. Esse ficar sozinho, só comigo, esse cheiro inicial de liberdade - de ser só eu, num ambiente em que tudo era novo, inclusive eu. Não precisava ser quem eu sempre fora.
Foram onze anos na mesma escola, no mesmo condomínio, no mesmo futebol, com as mesmas pessoas, nos mesmos “mesmos”. Era óbvio: ser alguém diferente era uma perspectiva irresistível.
Lembro-me de estar em um frenesi pré-provas na PUC. Todos estudando, todos com códigos marcados, resumos mal feitos, livros subilnhados, cadernos. E eu lendo Machado de Assis. Era um livro de contos, me lembro. Deliciava-me nesse distanciamento. Assumo: talvez, eu até precisasse estudar. Mas precisava mais me provar que eu era diferente. E mostrar isso para todos fazia parte dessa equação. Como a insegurança pode ser sutil a nos impor situações que mudam a percepção que temos de nós mesmos.
No meu caso, ela deu asas a um aspecto da minha personalidade que moldou a percepção alheia sobre. O que, em última análise, acabou por criar a percepção que hoje tenho sobre mim mesmo.
Quando descobri a culpa
Esses dias rememorei a origem do meu trauma por cachorros. Meu pai, quando era subsíndico do prédio onde morávamos no Humaitá, discutiu com um cara que levava seu cachorro, grande, sem coleira, no elevador. Eu tremia de medo, tremia mesmo, e meu pai, constatando aquele temor que tomava conta de mim, assumiu uma posição de pai e me protegia. Depois de me ver nervoso no canto do elevador entre suas pernas, levantou a voz pra cima do dono do cachorro - que insistia em fazer o traslado térreo-casa com o cachorro, enorme, solto - e eles por pouco não saíram na porrada.
Minha mãe me lembrou disso essa semana. Eu não sei se havia esquecido ou se escondido essa lembrança. Talvez tenha colocado-a de canto. Realmente não sei. Só sei que depois desse episódio o sujeito fez da nossa vida no condomínio um inferno, fazendo reclamações para administração de tudo que eu fazia no play. Bicicleta com rodinhas, chutar a bola de futebol nas paredes, gritaria e corria, tudo. Eu fui minguando, meu pai também e, de saco cheio, decidimos nos mudar. Meu pai, com um sentimento de culpa que me faz sentir o mesmo, também já cansado das dinâmicas da zona sul - o trânsito, o andar incessante, o convívio social obrigatório - achou salutar mudarmos todos para Barra, esse fim de mundo (e começo de outro) no qual cresci.
Olhando os fatos em retrospectiva, o meu medo de cachorro, quase um adjetivo para mim, foi a origem para a maior mudança da minha vida. Não me esqueço de chegar à Barra, no antigo Volvo do meu Pai, chorando na janela, e minha mãe me acalmando. O medo de cachorro criou, de uma só vez, dois traumas: o meu pai no elevador e a mudança para Barra.
Claro, hoje, nada dói. Sou quem sou pois me mudei, e que bom que foi assim. Sem barra, sem Novo Leblon, sem Santo Agostinho… eu não seria eu. Seria outro, mas jamais eu. Meu medo de cachorro, chuto que sintoma de uma superproteção parental, entretanto, continuou um trauma, como se todo vez que eu visse um cão meu inconsciente me levasse para aquele elevador pequeno, apertado, onde eu conheci a culpa pela primeira vez, sentindo que é o algoz daqueles que desejam, acima de tudo, a aprovação alheia.
Pai, me desculpa. E obrigado.
Uma boa frase
Dicas de poesia: a rima não vem só na última sílaba. Cai bem rimar paroxítonas com paroxítonas, combinando sílabas tônicas de forma escondida. Como Chico faz em Construção, também, proparoxítonas com proparoxítonas.
É como se as palavras fossem invertidas, começando ao terminar.
Vivo sonhando
Mais uma noite de muitos sonhos, e dessa vez madruguei em Oslo, na Noruega. Nunca fui a Oslo, não sei como são as placas, os postes, as ruas de lá. Mas sei que estava em Oslo, porque estava com um norueguês ao meu lado, ele assim se apresentou, e só em Oslo há noruegueses.
Só em Oslo há noruegueses, assim como só em Copenhague há dinamarqueses; e só em Helsinque há finlandeses - há quem diga que nem em Helsinque os finlandeses são maioria; há quem diga que eles nem existem.
Eis o mundo, as pessoas são da onde estão, via de regra, e eu estou nos meus sonhos.
Começo de algo
Difícil precisar o dia, mas o mês era março, aquela aura de
final de verão inconfundível: calor, chuva, pessoas bronzeadas, reencontro na
faculdade. Ninguém imaginava que dali a duas semanas o mundo se fecharia em si
e a vida ficaria sob condição suspensiva, como se houvesse uma fila de sete
bilhões de pessoas em frente a uma bilheteria de cinema esperando o sinal verde
para entrarem na sala. E que essa fila ficaria imóvel por mais de um ano. Como aquilo
que somos incapazes de imaginar é justamente o que acontece, foi exatamente o
que ocorreu: a difusão de um vírus mortal que surgiu no outro lado do mundo fez
com que março deixasse de sê-lo, e em breve todos os meses também perderiam sua
identidade, porque o cenário seria sempre o mesmo: a própria casa, o próprio
quarto, os mesmos cheiros, os mesmos mesmos – e as estações passaram a ser
todas uma só. 
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