A velhice

A velhice


Todos os dias constato: os meus pais envelheceram. Isso me traz um sentimento indecifrável, que faz sentido definir como uma combinação de aflição com serenidade. Fico aflito por motivos óbvios: a velhice, muitas vezes, significa problemas (no plural, claro), e, em derradeiro, o fim. Serenidade, confesso e mudo de ideia, talvez não seja a melhor palavra para descrever meu estado. Diria que sinto uma certa satisfação, consubstanciada em um olhar orgulhoso por ver neles figuras adoráveis que chegam, quase que sem perceber, à terceira idade.


Constato essa nova fase de meus pais separadamente, por meio de eventos avulsos e distintos entre si e que se afeiçoam, singularmente, à personalidade deles.


Certifiquei-me, com minha mãe, quando fui outro dia à cozinha fazer um café e esbarrei com ela cochilando no sofá da sala, de tarde. Coisa raríssima. Minha mãe, como eu, não sabe dormir (não é que não consigamos; nós não sabemos dormir, como se, na infância, tivessem nos esquecido de ensinar isso). Eu nunca a havia visto tirar um cochilo. Hoje vi. Imóvel, segurando o telefone na mão direita com a luz da tela ainda acesa, a boca entreaberta, os braços soltos e sem dieção, e os chinelos ainda nos pés, prestes a cair. Quando vi, me assustei: isso não é coisa da minha mãe. Mas é da velhice, que nos sentencia a novos hábitos por meio de uma força que é maior que nossa essência.


Meu pai, por sua vez, cronológica e perceptivelmente mais velho, já me mostra estar na terceira idade há mais tempo, apesar dele, mais que minha mãe, não (se recusar a) perceber. Quem me é mais próximo tem ouvido de mim que papai, em priscas eras um maromba, está malhando comigo. Tenho adorado isso, mas é meio preocupante vê-lo em ação: ele não tem qualquer regra e opta por fazer exercícios sem coesão, isolados por um sem número de repetições que são arbitrados por ele, conforme, eu chuto, a aleatóriedade da sua vontade ou do seu cansaço (antônimos que, no caso, significam a mesma coisa). São 20 repetições de bíceps, seguidas por 7 no tríceps (sic), 6 no ombro e, se der tempo, dá-lhe 10 tentativas no crucifixo. Assim. 


Semana passada, na última vez que malhamos, ele se aventurou a malhar a perna na extensora. Com pressa, colocou o negócio redondo no meio das canelas e subiu reclamando de dor, falando que devia ter colocado na parte superior do pé. No dia seguinte, amanheceu com marcas roxas no pé. Hospital, exame doppler, médico, resultado: problema na circulação, talvez compressão de algum vaso, mas nada preocupante.


Recebida a notícia, confesso que logo imaginei meu pai usando uma daquelas meias de compressão, longas e transparentes, para caminhar por aí. E o imaginei velho, bem velhinho, pedindo minha ajuda para caminhar; e dizendo que sempre fez cozinhou para mim e sou eu, agora, quem estou fadado  a cozinhar para ele. Me imaginei no futuro, meio sem paciência como sou, sem paciência como talvez será, cozinhando pro meu pai com algum esforço (sou péssimo), e ele animado, com um sorriso já tímido, esperando para comer comigo, repetindo o rito que fora, por muito tempo, o motor dos seus dias.


Essa reflexão toda me fez sentir um amor puro que não sentia há muito tempo  - que piegas, o amor. Meus pais, que sempre me criaram em um berço afetuoso, com vias a me proteger desse mundo tão esquisito e que consegue vencer até as melhores das nossas intenções, merecem ter a velhice mais afável possível. Uma velhice também salutar e adequadamente protegida desse mundo tão esquisito, como foi a infância que eles viveram para me proporcionar.

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