Verão

 


I.          I.                A minha piscina

É dezembro. O sol bate verticalmente na piscina, como uma flecha que se espalha pelo chão. Após meses inúteis, sirvo. Férias escolares. Crianças e aqueles que ainda não sabem se são crianças, adolescentes ou adultos chegam. A piscina é o seu lugar.

Entram de manhã, almoçam no restaurante anexo ao espaço, e, com os dedos enrugados de água clorada, mergulham as mãos em batatas-fritas, quibes e demais frituras imersas no óleo do dia anterior, do mês anterior – não sei, do verão anterior – para logo depois passá-las nas sungas e bermudas, brilhando-as, e retornar à piscina. Normalmente, fica a maioria até o meio da tarde, por volta das três, quando o sol se esconde atrás de um dos prédios que cerca a área.

Sou guarda-vidas e admito que a mudança de nome da minha profissão faz sentido. Gradualmente, deixei de ser chamado de “salva-vidas”, que deu lugar a “guardião de piscina”. Mais honesto. Abro e fecho os chapéus nas mesas, limpo-as, arrumo as cadeiras, organizo as espreguiçadeiras e, ao final, me despeço jogando cloro na piscina. Um guardião da piscina.

Dias agitados, funções organizacionais, lidar com o caos. Mentira.

Passo o dia sob uma cadeira branca, suspensa por longa perna de madeira também branca, que me coloca no ponto mais alto. De lá, apuro o que acontece nas quatro piscinas – uma para bebês; outra para crianças de até sete ou oito anos; uma intermediária; e outra semiolímpica, utilizada, na maior parte do tempo, para aulas de natação. Durante a semana, apenas a última recebe visitantes. A do meio até tem público pela manhã – velhas fazendo hidroginástica (devem urinar toda a piscina sem perceber) –, mas é só. O triplo de pessoas me visita no verão, e eu prefiro assim. Não há considerável aumento de trabalho. Mas há o que fazer.

Ocupa-me o tempo.

II.              Chegada

Em novembro, vejo-os pela primeira vez.

Distante, assumo que têm perto dos vinte anos, talvez menos. Não mais. Ela, apesar disso, é mulher. Seu biquini azul é coberto na parte debaixo por uma canga branca, mas não transparente, com alguns bordados também azuis em formato de objetos marítimos. Morena, com duas espinhas, uma em cada bochecha, e um olhar devoto. Descrevo-a pela memória, e não pela primeira impressão.

Ao seu lado, o rapaz que transformei em Tadzio. Alto, loiro, nariz fino e pontiagudo, boca delineada e um corpo sem academia, mas como se tivesse sido esculpido lá. De bermuda larga, não como um surfista desleixado, mas como um quem nunca precisou da moda. Usava chinelos. Éramos três procurando formas de ocupação.

Naquele dia havia um evento infantil à tarde na piscina. Quantos jogos as crianças têm capacidade de inventar; na minha época era só Marcopolo. Invejo-os. Seus dias tomam o tempo de um minuto.

Partiram perto das cinco. Biquini azul, canga, sorriso. Chinelo de dedo, bermuda larga, cabelo emaranhado.

Guardei-os comigo.

III.            O outro dia

Demorei para vê-los de novo. Alguns dias se passaram e outros vieram.

Alguns mais velhos, outros mais novos, poucos na idade deles. Depois de sentir falta, pensei que não voltariam jamais. Voltaram em janeiro.

Diferentemente da primeira vez, foram um dos primeiros a entrar. Estranhei. Não teriam nada melhor para fazer tão cedo?

Deixaram suas bolsas em uma mesa perto da semiolímpica, que guardava uma de suas raias para banhistas. Ouvi o barulho da água. Mergulharam num salto. Pararam no ponto da piscina que me escapava, o canto inferior direito do retângulo, escondido por uma elevação entre as águas.

 Não os vi, mas ouvi. Gargalhavam, jogavam água um no outro, batiam na superfície com os braços. Às vezes, ouvia o barulho de mergulhos e indagava o que escondiam debaixo d’água. Aliviava-me o som dos corpos emergindo.

Ficaram em silêncio. Imaginei o que podia. Quando não mais aguentei, decidi levantar e fingir uma ronda.

Logo que desci, vi-os deixando a água. Ele, tríceps marcado e as mechas do cabelo molhado encostando a nuca. Ela o seguiu. Para manter o disfarce, andei.

Já do outro lado, perto das suas mesas, olhei-os deitados nas espreguiçadeiras, olhos fechados para o sol. Poderia detê-los com o olhar. Quase o fiz: pés magros, tornozelos com fitas de pano, pelos nas canelas.

Respeitei-os.

Após o almoço, regressaram. Dessa vez, planejei melhor. De manhã haviam ficado duas horas — agora, ficariam mais uma.

Na extremidade oposta, vi uma espécie de lixo jogado no chão. Alguma coisa vermelha. Talvez uma lata de Coca Cola amassada, ou uma embalagem de um picolé gordo. Devo limpar. Levantei-me.

Passei à esquerda. Hesitei. Cruzamos os olhos. Cheguei a pensar que cochichavam sobre mim. Segui corado.

Era mesmo uma embalagem de picolé vermelha – me inclinei para pegar e lambuzei as mãos. Limpando-as uma na outra, andei.

Em vez de voltar, contornei a piscina. Eles tinham dois lados.

Chegando perto, faziam silêncio. Olhos mutuamente detidos. Ele, encostado na parede. Ela, à frente. Aproximavam suas mãos e as encaixavam. Seus cotovelos dobravam, atraindo-se apenas para, antes de se encostarem, esticarem os braços e repelirem-se. Repetiram-se no movimento.

Tornei-me um deles: passos para trás e para frente.

Quando uma boca se aproximou da outra, não resisti. Encarei. Os lábios finos de Tadzio, os lábios grossos dela. Um encaixe natural.

– Tá olhando o que?

Parado, pisquei. Um segundo. Dois. Minhas pernas não obedeciam.

Desloquei meus olhos para a piscina do meio. Crianças e velhas. Caminhei de forma inconsciente – quem se mexia era o chão.

Já os tendo ultrapassado, senti-o virar sua cabeça para mim, mexer a boca. Talvez tenha gritado – mas eu era surdo.

Torci para que não levantasse da piscina – aquele Tadzio –, corresse estabanado, cutucasse-me nas costas e, olhando-me de frente, segurando no colarinho da minha camisa, me perguntasse:

– “Ein! Tá olhando o que? Porque?”

Por que não o fez?

Cadeira escalada. Salvo.

Embaixo, hidroginástica. Ao lado, crianças.

Na frente, um novo casal na catraca.

Em seu canto, Tadzio e ela desapareceram.

Clausura

Clausura


Clausura

Acordo, abro os olhos e me vejo deitado na mesma cama de solteiro em que durmo desde os quatorze anos. Tenho trinta.

Hoje é segunda-feira. Trabalho de casa.

São aproximadamente dez horas da manhã – pelo que, suponho, minha mãe e meu pai ainda estão aqui. Meu pai ficará o dia todo. Foi aposentado de forma compulsória pelo mercado de trabalho há vinte anos. Desde então, dividimos a rotina. Hoje, na maior parte do tempo, é como se fôssemos dois homens que dividem um apartamento – cada um no seu canto. Falamos pouco.

Minha mãe está no seu último ano de trabalho antes de se aposentar. Costuma sair de casa por volta do meio-dia e retornar às oito. Tornou-se funcionária pública quando percebeu que, de fato, meu pai permaneceria aposentado – como um produto cujo consumo se torna inapropriado antes mesmo do fim da validade.

Ouço as vozes na sala e evito sair. Prefiro, na maioria dos dias, esperar a hora de minha mãe rumar ao trabalho. É também o horário em que meu pai costuma ir à academia.

Trinta anos. Tentei várias coisas. Desisti de todas. Entregar-se é aceitar a possibilidade de fracasso. Prefiro viver como se tudo fosse um grande teste. Assim, quando alguém me pergunta: “mas o que você faz?”, respondo: “algumas coisas” – o que dá no mesmo que “nenhuma”. O meu éden é a inexistência de pretensão. Se fosse uma árvore, pegaria uma tesoura e me podaria – seria menos, mas manteria a forma: gosto do que sinto, o problema é a intensidade.

Mas como evitar? Quando nasci, fiquei meses internado, respirando por aparelhos debaixo de tantos olhos alheios – que, na infância, se condensaram nos olhos da minha mãe.

Com o tempo, isso mudou. Os olhos da minha mãe deixaram de ser os dos outros e os olhos dos outros é que passaram a ser, todos, os olhos da minha mãe.

Ouço a porta bater e sei que foram embora, em dupla. Levanto-me e vou à cozinha. Após preparar com calma o café e o relógio marcar meio-dia e quinze, sento-me no sofá da sala e abro o computador. Sou professor nômade, recém-doutor em Direito. Pulo de faculdade privada em faculdade privada, dou algumas aulas por semana, e complemento a renda com pesquisa contratada. Salário insuficiente para sair de casa e manter o padrão de classe média-alta que me acostumei, já que não tenho com quem dividir. Durante a pandemia, por dois anos, morei com Clara.

A casa é deles. À minha frente, meia dúzia de fotos da nossa família. Sempre nós três, como se os dois só tivessem passado a existir, como um par, após meu nascimento. Foi quase isso, conheceram-se em março e em julho eu estava por vir. Os sorrisos dos meus pais, os meus sorrisos. Irrecuperáveis. Uma harmonia propositada, todos os espaços eram para três. Além das fotos, meu pai deixa vestígios de que o ambiente é seu. Um cinzeiro, jogado na mesa de jantar, e uma tangerina, ao lado, que o espera no retorno da esteira. O odor da tangerina com o cigarro é repelente. Uma acidez queimada que não cheira mal, mas dói.

Por volta de uma e meia, eu, com o computador nas coxas, viro à esquerda e o vejo chegar. Suado, abre a porta, senta-se na mesa da sala, acende um cigarro e come a tangerina. Nesses momentos, interrompo tudo. Vou ao quarto e, por alguns minutos, espero sentado. Quando o ouço entrar no banho, volto à sala.

A casa se fragmenta.

Gosto das tardes. Meu pai se isola no quarto, cansado após malhar, e se absorve nos vídeos do youtube. Vê alguns episódios antigos dos Caçadores de Mito, outros tantos canais de receitas e, ocasionalmente, cede aos modismos do tempo e assiste a algum canal mais à direita criticando o STF. Nesses momentos, o volume alto invade a sala e eu, cuidadosamente, levanto-me e fecho a porta de seu quarto por fora sob a justificativa de que o cheiro de cigarro me faz espirrar. Com a sala só para mim, arrisco colocar alguma música enquanto trabalho. Como eu e meu pai temos gostos musicais diferentes, aproveito a porta fechada para ouvir o que quero no maior volume.

Tenho a sensação de que, mesmo se a porta tivesse aberta, os nossos sons saberiam não se misturar.

De vez em quando, meu pai aparece e me pede ajuda com alguma funcionalidade do seu celular. Comprou um Samsung de nova geração e, como tempo livre não lhe falta, testa todos seus recursos inúteis.

 –Filho, por que aparece essa notificação aqui?

Não sei, pai! Tenho vontade de gritar que não sei – é óbvio que não sei – mas me contenho. Respondo apenas: “não sei, papai, estou ocupado agora”.

Mesmo assim, ouço-me dizer: “gordo, fumante, mais de setenta anos e sem trabalho – ele vai morrer em breve e você o trata assim!”. E o faço vivendo na casa dele. Paro tudo e vou ao quarto. Digo que vi no google como se resolve seu problema e tento ajudar. Normalmente consigo. Nunca é difícil. Passo o telefone de volta para aquelas mãos que me seguraram primeiro.

“Obrigado filhote!”.

De nada, pai.

Vejo que o relógio já marca dezessete horas. Estou atrasado.

Posterguei o início do dia, interrompi-o pelo meu pai e, agora, devo correr contra o tempo para terminar o que me cabe até minha mãe regressar. Ela chega e a sala deixa de ser minha. Da mesa de jantar, ignora meu foco e me dirige perguntas que podem esperar: “filho, você vai à UERJ amanhã?” (pelo que eu sei, fui nas últimas dez terças...); “filho, você lanchou?” (não, mãe. Deixei a lancheira em casa e passei fome no recreio!); “filho, seu pai cozinhou o que para vocês?” (não pode perguntar para ele?). “Sim, vou”; “Sim, mãe”; “Macarrão com carne moída, mãe”. Finalmente respondida, ela já pode dirigir a sua bateria de perguntas ao meu pai. Em vez de fazê-las com ele no quarto, escolhe gritar da sala. Tenho vontade de dizer: “se quer usar o sofá, é só pedir”.

Mas a casa, além do meu pai, é dela.

Quando novo, esperava mamãe ansioso. Queria aquelas perguntas para expurgar o silêncio do meu pai. Hoje, torço para que ela se atrase. Quero que o silêncio dure um pouco mais.

Consigo acabar a tempo. São dez para as oito e minha mãe ainda não chegou.

Vou à cozinha, monto um sanduíche (pão, queijo minas, tomate, alface) e, nesse meio tempo, minha mãe abre a porta.

Sem trabalho a fazer, as perguntas se tornam pertinentes: “Vou sim, mãe. Amanhã dou aula de obrigações solidárias!”; “Não lanchei, mãe. Estava sem fome...”; “Cozinhou, claro. O clássico macarrão com carne moída”. Respondo-as todas, com ênfase e sorrisos. Talvez a diferença entre os quinze e os trinta seja apenas o trabalho. Sem trabalho, é possível ser o mesmo.

Fico um pouco na sala, mordendo o sanduíche, e percebo que também faço perguntas no mesmo campo semântico – “conseguiu almoçar com calma?”; “tinha muito trabalho lá hoje?”. Será que ela também sente raiva de mim e responde, mentalmente, “o que esse garoto quer saber tanto do meu dia? A mãe sou eu!”. Não sei. Por suas respostas, parece que não. Acho que gosta do tipo de filho que sou.

Perto das nove, já sem mais o que dizer, ela liga a televisão para assistir àquela série sobre a família real britânica. Em resposta, levanto-me. Levo o prato à cozinha. Lavo-o. Bebo um gole de mate direto na garrafa. Dou boa noite. Volto ao quarto.

Ergo o edredom, os pés escapam para fora de sua extensão e ligo a televisão. Nove horas já é um bom horário para dormir – amanhã acordo às seis. Penso em ler por meia hora antes de efetivamente fechar os olhos, mas o livro é Moby Dick, que exige certa energia para controlar os olhos nas longas descrições que o ocupam. Gosto de ler sobre o capitão Ahab, pouco me interessa a baleia. Há quem leia Moby Dick pela baleia e há quem leia por Ahab. Talvez existam aqueles que leem pelos dois.

Ligo a televisão para pegar no sono assistindo a algum esporte, e, quando meus olhos estão para fechar, desligo. Da minha cama, vejo a luz acesa no quarto dos meus pais: ainda estão acordados. O que fazem?

Olhos fechados.

Em breve, abrirão novamente. No mesmo lugar.

Na ilha

 

Na ilha


Chega em Havana ainda dormindo e, quando abre os olhos, pensa que está vagando por alguma rua perpendicular à Avenida Rio Branco: prédios clássicos mal-conservados, pretos e pretas vagando pelas ruas, sujeira, água turva roçando o meio-fio e má iluminação. São duas horas da manhã, e, mesmo assim, há movimento nas vias. Melhor: há movimento nas casas, cujas grades são coladas no asfalto e as luzes acesas fazem parecer que há algum agito externo. Parado, as calles movem diante dos seus olhos, como um filme na tela. Está dentro de um Dodge fabricado em 1957, cor roxa, com dois bancos horizontais – um na frente e outro atrás – e capacidade para mais ou menos seis pessoas. Dentro do veículo, recorda que está em Havana, a cidade em que os carros possuem dois passados possíveis: fabricados antes de 1959 ou origem russa. A bem da verdade, os carros são mesmo cubanos, autênticos frankesteins que em pouco preservam a origem – modelos da época de Stalin têm rádio embutido, ar refrigerado, sistema de som e motor modernos. Apenas a casca é original. A casca é apenas o que o restou de boa parte de Havana.

Na manhã do dia seguinte, tem o sono perfurado pela voz de um vendedor de rua. Grita “tomate! Tomate!”, com pausas entre as sílabas, transformando a palavra numa oxítona. To-ma-tê! Quase uma ordem, toma-te o tomate, e ainda parece difícil distinguir o que é sonho e o que é Havana. Acorda com fome, mas não há comida em casa, e a solução é beber a água da Flórida que está no frigobar, sair para caminhar e esperar dar a hora do almoço. Não se deve beber gelo de restaurante, avisa a anfitriã antes de sair. Mojitos quentes?, impossível – como é fácil aconselhar.

Abre o portão do prédio e encontra a rua suja, cães com costelas aparentes e pessoas abrindo suas casas para deixar à vista o pequeno comércio que têm nas salas. Caminha cem metros em zigue zague, desviando do lixo, dos comerciantes de frutas e verduras e de cubanos que, ao virem que caminha de óculos escuro, o identificam como estrangeiro e correm para oferecê-lo qualquer coisa que estejam vendendo – mesmo que não estejam, na verdade, vendendo nada. Segue a pé e, num clarão, percebe-se em uma praça ampla, limpa, bordada por prédios clássicos de cor amarela e recheada de bancos e restaurantes com aspecto moderno. Está na Europa, e não parece que caminhou, mas que se teletransportou ao longe. Acordado, raciocina: não é sonho, é Havana. O que dá quase no mesmo.

Enquanto cruza a praça recebe uma dezena de ofertas de cardápio para almoço. Nega-as todas, pois tem direção certa: quer chegar ao Malecón, onde pode iniciar sua caminhada pela orla de um mar sem areia; um mar, para o carioca, totalmente desprovido de função. Assim como o Rio, Havana nasce do centro e se desenvolve pelo oceano. A caminhada de Havana Vieja ao começo do Malecón é a mesma que se faria da Cinelândia ao aterro do Flamengo – do centro histórico ao começo do mar – enquanto o final da orla Havanera, em Miramar, poderia ser o final das praias da Zona Sul, no Leblon.

No Malecón, o movimento dos carros é mínimo: passa um, depois outro e um longo tempo de silêncio se segue. Um carro, entretanto, faz o barulho de vários. Há motos, claro, motos com luzes coloridas, típicas de Cuba, e motos com um rabo lateral, perto do chão, para o caso de se levar outro passageiro. Pensa como seria legal seguir essa orla toda de bicicleta, mas não sabe o ofício: seu pai, pouco atlético, não lhe ensinou, decidindo seu destino de sempre andar a pé. Deveria ser honesto consigo e não culpar seu pai por seu medo de cair.

É segunda-feira e se surpreende com a quantidade de pessoas nas ruas. Vagam em bandos, conversam paradas, fumam sozinhas: toda hora parece a hora do café. Há uma sensação de despropósito no ar, de que os dias são todos iguais e que nada, absolutamente nada do que é feito hoje terá qualquer impacto no amanhã. Havana tem mesmo um estado onírico propositado: ninguém quer acordar. No caminho, se depara com uma fila de pessoas paupérrimas que esperam a retirada do alimento em algum mercado estatal. Saem, uma de cada vez, com um pão guardado dentro de um saco de plástico. Um senhor rapidamente se senta no meio-fio, destrói o saco plástico e devora o pão em questão de segundos. Talvez faça isso todos os dias, como se fosse um dever.

Sem direção, aceita descansar em uma praça que surge enquanto passa por uma área mais afastada da cidade, cujo aspecto residencial quase-condominial faz lembrar a Barra da Tijuca. Senta-se nos bancos e olha ao redor: com brinquedos avariados e enferrujados, a praça é estreita e cortada por um gramado cinza, que, elevado, deixa à sua beira alguns corredores largos e perpendiculares entre si, por onde algumas crianças se aventuram a jogar futebol. Há uma passagem no meio da praça – ou a praça fora construída no meio de uma passagem.

São cinco meninos disputando a bola. Não estão exatamente ali, naqueles corredores que ele e outros transeuntes enxergam, mas em algum estádio do mundo, talvez o Camp Nou, pois imitam Messi e Lewandowski, enquanto um diz ser o brasileiro Raphinha, craque do Barcelona. Sentado, critica a organização dos garotos: estão em número ímpar e ainda assim usam dois goleiros – deveriam jogar dois contra dois com apenas um deles na meta. Esquece-se de que olha para uma fantasia.

Após certo tempo, decide se juntar a eles: levanta-se, coloca seu óculos escuros no bolso, olha para as sandálias que dificultarão a performance e caminha até o quinteto. Com um espanhol de jogador brasileiro recém-chegado ao Barça, pergunta se pode jogar. Primeiro, olham-no desconfiado, mas quando diz ser do Brasil, sorriem e passam todos a querer jogar com ele. Há um desejo coletivo de que se reúnam todos no mesmo time e disputem uma partida de seis contra zero, que definitivamente acabaria numa vitória acachapante da maioria. Regrado, insiste na divisão em duas equipes iguais, com três jogadores.

Rola a bola, e logo vê que são todos desprovidos de qualquer gesto técnico – ou talvez estejam praticando outro esporte. A pelota corre de um lado para o outro, não para – bicam-na sem direção e correm atrás; só podem estar pensando que estão mesmo no Camp Nou. Quando a bola finalmente esbarra em seu pé, decide brincar de faz de conta: finge que chuta e não chuta; ameaça passar e não passa; faz que vai driblar e perde a bola para os três adversários que, embaixo do seu tronco, se transformam em um só para efetuar o desarme e fazer o gol. Recebe desconfiados olhares de seus parceiros de time, como se dissessem: esse brasileiro não joga é nada.

Brinca mais um pouco, faz uns gols, dá passe para outros, diz que o Brasil está ganhando de Cuba para depois ouvir deles que Cuba virou o jogo. Diverte-se e, suado após a partida, se despede e resolve retomar a caminhada. No percurso, lembra-se que, na infância, nunca era ele jogando futebol, mas alguém: sempre incorporava um jogador do Fluminense, como fez na vez em que Tuta, esforçado centroavante tricolor, quebrou o nariz e jogou de máscara para protegê-lo. No dia, como quebrar o próprio nariz e ir ao hospital para colocar uma máscara de proteção doeria muito, desceu para o play de seu prédio com uma máscara do Batman que tinha no armário. Em Havana, é preciso conseguir se transformar no Tuta sempre que quiser.

Após mais alguns quilômetros, chega, finalmente, ao destino do dia: o cemitério da cidade. Entra desavisado e logo recebe um aviso da segurança: é preciso pagar para ver os defuntos. Dá meia-volta, pisa numa sala de madeira escura, de aspecto burocrático, adornada por quadros tortos e sofás que estão posicionados de forma randômica em diferentes direções – alguns, inclusive, encontram-se virados contra a parede. À frente, há uma mesa de madeira em que se lê BURÓ DE TURISMO e onde, atrás, está uma senhora negra, de óculos e cabelo preso, que logo sorri ao vê-lo ultrapassar a porta.

Ela puxa assunto e pergunta de onde vem; diz que do Brasil. A primeira referência são as novelas, tão amadas pelos cubanos. Avenida Brasil? Sim, claro. Não é noveleiro, mas leva o papo – Tufão? Tufáo! – e mostra a Adriana Esteves no google. A senhora, incapaz de separar a atriz do personagem, aponta e diz: é mala!, querendo dizer que é má, e não que é chata. A conversa dura alguns minutos e, com sutileza cubana, a senhora a encerra informando que, infelizmente, cobraria cinco dólares pela visita ao cemitério. Pega a carteira no bolso e percebe não ter dólares, só pesos cubanos. Pergunta se poderia pagar em moeda nacional e ela diz que sim. Um dólar compra trezentos pesos, então pensa que terá que dar a senhora mil e quinhentos pesos cubanos. Antes de pagar, ela diz: dá-me quinhentos pesos que está certo.

Caminha pelo cemitério, vai à igreja, finge que reza e rapidamente fica de saco cheio. Fazer o que ali – corpos debaixo da terra, símbolos religiosos, corvos pairando –, é preciso alguma abstração para entrar no clima dos lugares, e ninguém quer entrar no clima de um cemitério. O sol se porá em uma hora; poderia ver o final do dia na orla, andando rente ao Malecón. Decide retornar por onde veio.

Na direção da saída, uma senhora bem velha, que está em frente ao túmulo de uma espécie de santa, murmura-lhe alguma coisa. Não compreende e não quer olhar para trás – vai que não há senhora alguma? – e segue andando. Dá um passo fora do cemitério e esbarra em um semáforo de pedestres: as luzes vermelha e verde, simultaneamente, estão acesas. Olha para trás e a senhora segue lá, corcunda, de branco, e lhe acena. Assustado, volta o rosto para frente e se surpreende com apenas o sinal verde aceso. Atravessa. 

Do outro lado, aproveita a esquina para se localizar no mapa e conferir a carteira, na esperança de ter pesos suficientes para comprar um sorvete. Encontra uns dólares perdidos, entre os pesos, e lamenta – poderia ter pagado a mais pela visita –, mas logo se resigna: em Havana, o valor das notas é dado por quem as recebe. Quinhentos pesos podem ser cinco dólares, um parque de quinze metros quadrados pode ser o Camp Nou e um pedaço de pão, repetido todos os dias no desjejum, tem o sabor que quem o come lhe quiser conceder.

Não está na cidade dos sonhos. Está na que se vive sonhando.

Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 2025

Na Praia

  Na Praia Chego ao Sul da França, em Nice, e logo me assusto: o caminho para o mar é feito de pedras, pedras grandes, pedras esteticament...