Caminhada
Não
havia nuvens. O céu azul era soberano. O sol brilhava. Ainda assim, a
temperatura não passava dos vinte e três graus. Saio da esquina da Rua das
Acácias com a Rua Marques de São Vicente, desço-a, contorno o resto da
Bartolomeu Mitre e sigo o canal pela Visconde de Albuquerque até chegar na
praia do Leblon. O trajeto continua pela orla. 
Faço
esse percurso três vezes por semana. Meu programa favorito, mas a competição
não é acirrada. Do outro lado estão a hidroginástica, a ida à escola dos netos
e a fisioterapia.  
Aposentei-me
há mais ou menos três anos, em meados de 2020, cerca de dois meses antes da
pandemia chegar ao Rio de Janeiro. Tornei-me um morto em potencial.
Se
quiser saber do impacto da pandemia sobre qualquer velho, pergunte-o como se
sentia quando as pessoas o olhavam com a dó de quem espera que seu próximo
passo seja o último antes de cair direto no caixão. Foi diante desses olhares
que vivi meus primeiros vinte meses de aposentadoria. Dizia à minha mulher,
ainda ativa: sou “sub-óbito”. 
A
pandemia passou. O olhar terminal também. E eu iniciei o final da minha vida. 
Ele
andava do outro lado do canal da Visconde de Albuquerque, no sentido da praia, enquanto
eu regressava. Neste dia, não satisfeito com nosso aceno, atravessou a rua e contornou
o canal que divide as vias para me cumprimentar. Estranhei. Sempre fora
recluso. 
Devia
ser a velhice. 
Será
que sua esposa está doente ou faleceu; que os filhos se mudaram; que algo aconteceu?
– estar velho é ter, a todo momento, uma lista de possibilidades trágicas
prontas para serem lidas.
Ao
vê-lo acelerar o passo em minha direção após meu aceno, parei. 
Não
gosto de parar enquanto caminho. Desnudo de propósito todo o motivo da minha
saída, que é fazer o tempo passar. Estou de sunga, tênis e meia três quartos,
apesar da temperatura amena. É uma escolha de roupa que faz sentido quando
observada em movimento. Parado, pareço um velho gagá. 
Me
surpreendi com uma marca roxa embaixo de seu queixo: não havia edema, apenas um
roxo chamativo na parte que deveria estar seu papo. Eu tinha. Achei que
ele devesse ter também. Nem todos os velhos são iguais. 
Reparei
que usava um short florido findo na coxa, típico da atual moda jovem, e uma
camisa do projeto TAMAR. Um visual misto. Provavelmente eram as peças de roupa erguidas
no sofá.
Trabalhamos
juntos, por anos, no Tribunal de Justiça. Ele era Oficial de Justiça. Carlos. Eu,
juiz. 
Aposentamo-nos
em meses diferentes no mesmo ano. Nunca mais nos encontramos. Assim, a primeira
coisa que pensei quando o vi chegar esbaforido foi que me contaria alguma
descoberta recente do fórum.
– Doutor, o senhor vai ao psicólogo?
Pergunta
estranha. 
– Não vou.
– Sério? Eu tinha certeza de que ia. Via
na sua sala livros que eu não via no gabinete de outros juízes. Achei que você
seria uma pessoa boa para conversar sobre isso. Minha esposa, pode esquecer. Só
acho bonito eu, depois de velho, tentar resolver meus problemas. O senhor nunca
nem foi ao psicólogo?
– Se já fui? Fui. Mas foi há muito tempo. Faculdade
ainda. Antes do Tribunal. Durou pouco.
– Então o doutor sabe como é. Desde que
comecei, tento entender como alguém que não sabia nada de mim pode me conhecer tanto.
E tão rápido. 
– Depois de cada sessão, eu pensava como o
doutor ficaria após as suas, se sentiria o que eu sinto, esse negócio de achar
que fiz tudo errado. O que psicóloga me diz... ela sabe.
– Olha, Carlos: ela não sabe. Interpreta. 
– Interpreta?!
Gritou,
antes que eu pudesse responder:
– Ela disse que foi por causa dos meus
pais que eu decidi me casar com uma mulher que não me amava! E por isso
abandonei meus filhos!
Calei.
– Eu passei a odiar meus pais, doutor. Eu
os odeio há três meses. E eles estão mortos há dez anos! Sinto que preciso
odiá-los bem mais! 
Não
há nada mais desarmônico que um velho exaltado; a velhice é a consolidação do
domínio. Tudo deve estar sob controle. 
Sempre
o reputei como quem fez um curso técnico para viver a própria humanidade, com
um método próprio para gerência das emoções. 
 Eu estava errado.
– Sim, Carlos, interpreta. Nada é
absoluto. Fala com ela sobre isso. Quando é a próxima sessão?
– Hoje. Seis da tarde. Achei que ela
falava a verdade!  
– O diálogo faz parte. 
– Espero que dê tudo certo.
Nos
despedimos com um aperto de mão. Seguiu caminho e, de costas, vi a tartaruga de
sua camisa diminuir até sumir. 
Continuei.
Não
olhava os carros, pessoas, sinais. Só Carlos. Um homem de mais de sessenta anos
que resolveu conhecer um novo mundo quando já esquecia onde começava o seu.
Ao
chegar em casa, pensei em contar à minha esposa sobre o encontro, mas desisti.
No
quarto, abri o celular e vi uma mensagem da minha irmã: 
“Hoje
papai faria noventa anos. Sei lá se sinto saudade”. 
Noventa
anos. Em breve sou eu. Será que sinto saudades? 
Não
respondi, mas digitei o número do seu celular.
– Irmã, tudo bem? Não lembrava que hoje
era aniversário do papai, mas liguei para te falar outra coisa. Daquela época
que você cursou psicologia... 
– Oi, mano, tudo bem? Pois é, eu nunca
esqueço. Coisas de filha caçula. Mas me diga: o que quer?
– É, caçula. Às vezes esqueço disso. Você
nasceu tão perto de mim. Um ano só.
– Papai dizia que nem ciúmes você
conseguiu sentir, pois não se acostumou a viver como filho único.
– É, talvez. 
– Escuta: me indica uma analista? 
Amanhã,
dezoito horas.
 Sala à meia-luz, pernas esticadas e olhos no
teto. 
Alguém
vai me escutar.
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